Persona non grata
Aspirante a cronista independente tem destas vantagens: escreve quando quer e se quiser. Entra em bola dividida, faz contemporizações, viaja no lugar comum, aprende um pouco aqui e ali e passa para seus registros, de responsabilidade mais limitada, visto que pouco lidos. Hoje, acredito que meu escrito vá viver a primeira situação, pois o assunto ganhou ares de polêmica – não sei se justificável.
“O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando H… resolveu matar os judeus”. A reprodução da fala do presidente Lula é retirada do site da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), órgão estatal, que, sem nenhuma censura, faz uma análise da repercussão que a entrevista ganhou – sobretudo no Brasil, sublinho.
Notaram que sequer escrevi o nome do promotor da barbárie contra os judeus? Para mim, é uma espécie de tabu linguístico, e há pessoas que não o pronunciam. Em algumas lives na internet, há comunicadores que preferem não mencionar, precavendo-se assim contra possíveis cortes no YouTube.
Eu me lembro… Era no ginásio. Gostava de história, mas não me recordo de uma aula bem detalhada, bem explicada – nos limites de um tempo de ditadura – sobre a escalada nazista contra o povo judeu. É que havia muitas feridas frescas, expostas, sangrando… Fui, entretanto, um pouco além, no aprendizado, comprando algumas revistas nas bancas de jornais. Mas não sepultei o tabu emocional-linguístico, que está ainda hoje vivo em mim e em muitas pessoas, a ponto de assistir com reservas a alguns filmes e documentários do vasto acervo sobre essa barbárie enfrentada por um povo indefeso.
Lula sabe disso muito bem. Ele não se jacta de cursos concluídos, a não ser o de torneiro mecânico pelo Senai… Mas Lula, sabe-se, leu bastante, principalmente quando esteve privado da liberdade. E Lula, todos sabemos, viveu rodeado de intelectuais a vida inteira e, agora, depois da viuvez de uma mulher corajosa, é casado com uma socióloga. Lula tem a seu lado a figura culta de Celso Amorim, que, certamente, o assessora em complicações técnicas. E, se ele vai de peito aberto para uma coletiva, o faz sabendo de todos os riscos. De uma coisa estou certo: o presidente traz consigo a poderosa arma dos que amam a humanidade e têm uma simpatia especial sobretudo pelos mais simples, pelos desafortunados, pelos refugiados sofridos, para os quais, se estivesse ao seu alcance, Lula faria muito, muito mais…
Entre o pequeno e o grande, entre o pobre e o rico, entre o poderoso e o desempoderado, não tenho dúvidas da opção de Lula, que é pacifista e, por consequência, não aceita a violência cometida pelo Hamas em Israel.
Mas Lula, vendo que o poderoso estado de Israel – esquecendo, até, seus reféns que estão em Gaza – não cede um milímetro na sanha de eliminar o Hamas, destruindo casas, hospitais, ruas e ceifando a vida de civis, de mulheres, de crianças, ele, Lula, de forma muito pausada, fez a comparação dessas atitudes ao que a criatura abominável fizera com os judeus na Segunda Guerra. Um ‘lapsus linguae’ imperdoável na avaliação de tanta gente no Brasil. A imprensa, falo da grande imprensa, montou um time de comentaristas e apresentadores para questionar e incriminar Lula pelo agravo, que o leva à condição de ‘persona non grata’ em Israel, caso não se retrate, o que, certamente, não fará.
Lula traz para a cena um imaginário coletivo recôndito nos escaninhos das almas que temem falar, com receio até de exageros que a linguagem não pode balizar. Na dúvida, o silêncio! Na dúvida, Lula, preferiu – com calma, sem gritos – romper tabus, mexer em feridas e corajosamente pedir a paz.