Havaianas na chuva

     Não havia coisa mais bonita que exibir as havaianas, novinhas em folha, na chuva. Subir e descer as ladeiras de Pitangui de chinela de dedo não é nada fácil; fácil era escorregar e arrebentar as correias. O rapazinho, porém, não se importa. Ao contrário, delira. É a primeira compra, o primeiro salário, é dono do mundo. Todos têm que saber. Esquece um pouquinho dos amores frustrados e até dos promissores. 

     A chuva fina não impede o passeio, ele tem guarda-chuva, pode continuar rodando pelo centro e exibir seu par de chinelas. Sai da Banca Lacerda, na esquina da Rua Padre Belchior com a do Pilar, e sobe até o Edifício Liliza. Anda um pouquinho no passeio da Pensão Central e do Banco Hipotecário, na Rua Martinho Campos. Desse lugar alto, vê a capela do Bom Jesus, na subida da Rua da Paciência. Volta à Praça da Câmara e sobe em direção à Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

     Anda por ali, finge que foi ver o cartaz de cinema, dependurado no adro da Matriz, e o do jogo de futebol, afixado num poste de ferro, a meio caminho do monumento à Colônia Libanesa, o famoso Pirulito. A todo instante, olha para o chão, olhos e alma fixos no par de chinelas de tiras azuis. O povo se escondeu da chuva, decepção total, ninguém vai ver e comentar seus troféus naquele dia importante.

     Tinha que continuar caminhando, volta ao Chafariz, erguido em 1835, parece um turista. Passou pelo busto de Juscelino, eternamente olhando para o Oeste. Ainda cheio de corda, sobe até o Fórum, sem qualquer sentido, porque estava fechado, só abriria ao meio-dia. Do alto da escadaria, vira-se para a Praça da Câmara e vê, no alto do Lavrado, os campos do Clube Atlético Pitanguiense e do Pitangui Esporte Clube, que alguns ainda chamavam de Oito de Maio. O nome do clube é referência à data da rendição da Alemanha na Segunda Guerra Mundial.

     Dali, entrou na Matriz pra passar água benta, ajoelhar-se em frente ao Santíssimo, mas nem pensou em agradecer por aquela conquista. Tinha era que mostrar ao mundo seus troféus, todos deviam saber que era seu primeiro salário e aquele par de sandálias era sua primeira aquisição sem precisar do dinheiro do pai.

     Trabalhava na banca de revistas, o patrão era José Torres de Lacerda, pagava certinho. Tinha de respeitá-lo, era seu primeiro patrão. Uns dois anos depois, já trabalhando como datilógrafo, passando a limpo as fichas dos processos do Instituto Histórico de Pitangui, foi à banca e pediu a revista Vamos Cantar. Queria aprender a letra de "Io che amo solo te" e "Zíngara". Lacerda estava atendendo, riu e disse:

     - Filho do Dininho só pode ser cantor de água doce, seu pai é muito desafinado. É um ótimo humorista, sem dúvida, e dança tango nas festas das barraquinhas de Nossa Senhora do Pilar... mas cantar, neca ... kkkkk. Se os filhos puxarem o pai...kkkk.

     Pensou que jamais o perdoaria. Não sabia o que era "cantor de água doce", mas pensou logo no desafinamento do pai. Devia ser isso. Ainda bem que, mais tarde, essa mágoa de adolescente se reverteria: Lacerda fez um depoimento emocionado sobre Ubaldino Pereira da Fonseca, o Dininho, no vídeo Tecendo Memórias, Parte 2 (link abaixo), destinado à Primeira Mostra de Cinema de Pitangui. Seu pai ainda vivia e participou da gravação, contando sua participação no teatro local. Que Deus os tenha!

Link do documentário Tecendo Memórias, Parte 2:

https://www.youtube.com/watch?v=U3hc4yIgz3I