A Silhueta do Além
Vejo nuvens lá em cima e a cidade movimentada lá em baixo. Estou caindo do céu, mas lentamente, pois meu corpo não está mais comigo. Sou como uma ideia descendo do céu sem recipiente. Posso subir flutuando e ficar em paz quando quiser, mas algo lá embaixo me atrai, me puxa. Sinto que não é coisa boa, mas a curiosidade me obriga verificar.
Me arrepio ao ver outro como eu, distante, também descendo do céu. Nós não temos forma. Apesar de um dia eu já ter pensado o contrário.
Observo o meu semelhante e ele me observa, sentimos o alivio da conexão por um tempo, depois volto a atenção para as luzes noturna lá em baixo.
Avisto a pracinha enfeitada com pisca-piscas natalinos. As pessoas são como pontinhos se movendo da distancia que estou. É quase natal, e lembrar dessa ideia cultuada, me causa uma torrente de deja vus, dentre eles me assusto com o som de disparo, porem o som não é real, só existe dentro de mim.
Evito pensar nisso e foco na queda.
A ausência do corpo me impossibilita de experimentar o vento e o frio, mas potencializa outras sensações que mesmo quando encarnados, no fundo sabemos existir.
Pouso na pracinha sem "tocar" o chão. Há muitos estímulos aqui embaixo. Há crianças deslizando no escorregador colorido do parquinho vigiados por seus pais que conversam entre si, há um delicioso cheiro de pipoca vindo das barracas lotadas. Vejo um boneco do papai noel acenando maior que um humano normal.
Passeio pelo ambiente aliviado por ser invisível. Os edifícios bem iluminados em volta da praça avivam as pessoas. Outro deja vu me pega quando deparo com um prédio em especifico, ele é gigante e poucas janelas estão acesas. Seu formato excentricamente torto, foi uma ideia chamativa que visitou cabeça de algum engenheiro sortudo.
Uma mulher aparece na janela que por coincidência eu já olhava. Uma intima compaixão me preenche quando ela passa as mãos nos olhos secando as lagrimas. Sinto que o choro dela é culpa minha. Ela de lá olha para onde estou, mas sei que não me vê, ainda assim experimento uma emoção morna, que esquenta mais ainda quando uma menininha surge ao lado da mulher consolando o choro.
Fico hipnotizado por aquele momento.
Minha intuição me alerta do que me trouxe aqui. Deixo o sentimento e a euforia da praça para trás me direcionando a uma rua feita de blocos brancos. No caminho, vejo o outro como eu, ele também está atraído por algo, pegamos o mesmo destino só até certo ponto, pois ele entra em uma casa de muro pequeno, e por cima do murinho consigo ver o local iluminado por velas, com pessoas de branco batendo palmas enquanto cantam algo considerado sagrado. O outro como eu rodopia em volta de um dos batedores de palma, e fica por ali, bem animado. E o batedor sorrir.
Tem pessoas que sabem da nossa existência.
A energia dali é maravilhosa, mas não é a que me chama, pois a que me chama é ruim e desconfortável. Continuo minha caminhada solitária pela rua de blocos. Certo momento me deparo com dois meninos sentados na calçada enquanto seus pais fazem churrasco no quintal. Os meninos conversam sobre algum quadrinho que leram. Um deles fala de seu herói fictício como se fosse real. Me conecto a paixão deles e me aproximo, mas eles mudam o tema de repente, falam de um sujeito que tomou três tiros esses dias a dois quarteirões à frente. Me incomodo com o novo assunto, e tenho impressão que quando me afasto eles voltam a falar de suas paixões.
Retorno a caminhar vasculhando dentro de mim como era o meu corpo. Quando dentro de um, eu achava que a vida que mora dentro da gente tinha o mesmo formato do corpo, como uma forma congelada, mas não, nossa vida é água sem forma que transcende qualquer matéria.
Outro deja vu, lembro que eu tinha medo da morte, mas não existe morte. Eu estou vivo, porém sem corpo. Então o que é morrer?
Quando dou por mim, sei que estou a dois quarteirões de onde as crianças conversavam, pois como se voltasse no tempo consigo escutar o eterno eco dos disparos. Foi aqui!
Me assimilando ao local, recordo do homem de jaqueta e careca que surgiu da esquina, a caminhada ansiosa dele pareceu demorada devido a complexidade de intenções, a mulher atrás de mim grita quando caio assustado com uma mancha vermelha no peito depois dos três disparos. No momento que meus olhos se cruzam com o do assassino, pelo seu rosto suado e olhos trêmulos, sei que foi a primeira vez que fez o que fez....
A forma do rosto dele é perfeita na recordação, mas o motivo dele ter feito isso ainda me é um mistério.
Joriane, o nome da mulher que gritou é Joriane, era minha namorada. Morávamos no prédio torto! Ela estava gravida. Então aquela menina com ela na janela do prédio era...
Minha essência ferve visualizando minha filha crescendo sem mim. E o que me magnetiza para terra fica mais forte.
Abandono a rua de blocos curvando a mesma direção que o assassino cruzou no dia. É uma rua de barro, sem postes, sombria. Um grupo de adolescentes se gabam uns pros outros de suas aventuras ilegais e assim como antes, seus assuntos mudam quando me junto a eles. Agora eles falam de mim. Descubro mais sobre quem fui. Meu nome foi Bruno, e pela descrição da conversa, sou branco de cabelos negros. Meu corpo se foi quando completei trinta e dois anos. Meu formato vem nítido na cabeça, e deixo minha essência tomar essa forma. Agora eu tenho ego.
E o ego ferve.
Estou pesado, e isso faz os adolescentes espontaneamente saírem dali, continuando seus assuntos marginais, mas me afastando do tema central.
Onde citam meu nome, eu estou.
Continuo andando pela rua escura, curvando por onde a tal sensação misteriosa me atrai. As pessoas que cruzo no caminho apertam os passos enquanto falam de seus medos, e longe da minha vibração retornam o assunto anterior.
Me deparo com um muro sem reboco pinchado, nele está escrito P.C.M, Primeiro comando dus muleque, coisa de adolescente. A primeira vez que escutei sobre isso foi da boca do irmão da minha namorada. Chamavam ele de Rick, mas o verdadeiro nome nunca soube. Joriane vivia alertando Rick para que deixasse de se seduzir pelo P.C.M. De fato ele nunca fez parte do grupo, mas sempre era visto com eles.
Rick era do tipo bicho solto que deixava a família maluca com seus sumiços na madrugada. Os pais incentivaram Joriane se aproximar como vigia do irmão nas saideiras noturna. Eu preocupado com Joriane, me juntei aos dois.
Nas baladas Rick nos abandonava para ficar bajulando os traficantes adolescentes, e ser temido como um deles, fazia meu cunhado se dar bem nas noitadas. Já vi ele sair da balada com duas mulheres no carro de uma vez. E sobrava para eu e minha namorada irmos embora a pé devido isso.
Quem são essas e as muitas outras mulheres dele, sempre foi mistério para mim. Eu e Joriane resolvemos parar de acompanha-lo pelo clima péssimo de suas amizades, e o mistério aumentou ainda mais quando ele apareceu no nosso apartamento do prédio torto na madrugada de sábado. Um olho estava roxo e um canto de boca sangrando. Largamos o filme para cuidar dele enquanto ele negava dizer o motivo daquilo. Mesmo assim atendemos seu pedido de ficar um tempo morando conosco.
Então foi aí que as vibrações ficaram ruins naquela casa. Pior ficou quando achamos uma pistola debaixo do colchão dele, e mais ainda quando tatuou uma bala de fuzil escrita P.C.M nas costas. Um ódio claramente o consumia.
Minha preocupação é que ele era sempre visto com sua irmã vigia pelas redondezas. E quando Joriane ficou grávida de uma filha minha, tive que finalizar a estadia dele lá em casa. Ele entendeu sem remorso e sumiu.
O sumiço exalava ansiedade em Joriane quando ela estava de olhos abertos e se transformava em pesadelos de monstros e fantasmas quando ela fechava os olhos.
E como identificação vibratória, ansiosos se atraiam para cá também. Várias pessoas estranhas tocaram o interfone á procura de Rick. Eram traficantes e noiados.
Volto minha atenção para o momento, me aproximo do fiat uno estacionado debaixo da castanheira, encaro o retrovisor, mas não consigo me ver. Imagino a imagem de Rick ali, e enriço todo ao perceber que pareço com Rick. Inclusive, uma vez naquele mesmo local, um desconhecido bateu na minha mão achando que estava falando com Rick. O sujeito devia ter se confundido devido eu estar acompanhado de Joriane, mas agora, sinto um frio na alma em cogitar que não seja esse o motivo.
Ficamos surpresos quando voltamos a ter noticias de Rick, ele havia aceitado Jesus e se tornara pastor pregando em uma igreja de outra cidade a qual não me recordo o nome. Joriane aliviou a consciência e tudo voltou aos eixos. Ou quase.
Pois faltando um mês do nascimento da minha menina, surgiu o homem careca e tomei os tiros enganados e deixei esse lugar. Perdi o laço com tudo que amo.
O que me chama esta dentro da casa sem reboco que acabo de ver. Paro em frente ela e sinto uma forte atração me puxando para algum cômodo do segundo andar. Uma onda etérea deprimente respinga na minha essência. Então voo até o segundo andar atravessando duas paredes. E ele está lá. A fonte do magnetismo.
O homem careca, sentado na cama, chorando com as mãos sobre rosto molhado de lagrimas. O homem que confundiu me com Rick.
Pouso em frente a ele e fico mais denso. Ele me sente, sabe que estou aqui, mas não quer acreditar. Prefere chamar de ansiedade. Fico ali por dias atormentando quem me afastou de minha família. Os melhores momentos são os que ele consegue me ver como vulto e grita "sai daqui Bruno!". Ele grita até a garganta arder.
Seu pai tenta ajuda-lo e também sente algo estranho no quarto, mas pensa que é uma exalação da depressão do filho. Não demorou e o careca foi diagnosticado com esquizofrenia. Mas eu e ele damos outro nome a esse encontro...