Sumiços e Emboscadas

A gente constrói uma vida em determinado bairro. Depois, por causa das ocupações e responsabilidades que vão aparecendo no decorrer do tempo (como um emprego em outro bairro), nos afastamos desse local - não me refiro necessariamente à distância física, mas sim a um afastamento emocional. Quando voltamos a ter uma aproximação afetiva, certamente vamos notar mudanças, que podem ser boas ou desagradáveis. Dia desses, notei uma mudança extremamente ruim.

Notei que um amigo de infância chamado Gustavo, ou melhor, o “Gu Ligeirinho” - por causa da sua velocidade no futebol - tinha “sumido”. Nunca mais o tinha visto e nem conversado com ele. Pensei que ele poderia ter mudado de vida - arrumou um bom emprego e construiu família. Isso seria uma boa mudança.

Perguntei a uma senhora, que também me conhece há muito tempo.

- A senhora tem notícias de Gu Ligeirinho?

- Não soube? Mataram ele!

- O QUE!?

É isso. Meu amigo de infância foi assassinado. Mais um. Quando ela me deu a notícia, senti uma breve tontura. Comecei a suar. O cara morreu e eu não sabia. Não fui ao enterro dele, nem prestei condolências à família.

- Quando foi isso?

- Tem dois meses!

- Por que mataram ele?!

- Não sei, meu filho. Disseram que foi envolvimento com o tráfico.

Eu senti vontade de dizer para ela: “é mentira!”. Mas eu não disse. Eu sabia que isso poderia ser verdade. Não era uma hipótese absurda. Gu era um cara do bem. No entanto, alguns amigos meus que eram boas pessoas acabaram no crime e foram mortos. Não é impossível gente se envolver no tráfico de drogas, se transformar num bandido frio e depois ser morto.

A senhora não sabia de mais detalhes. Todavia, eu estava interessado. Fui atrás de familiares. Iria tentar confortá-los e pedir desculpas por não ter comparecido ao enterro. Não sei se acreditariam em mim se eu dissesse que “não sabia”. E não vou negar, raro leitor: eu estava muito curioso para saber dos pormenores a respeito da morte dele.

Por uma rede social, contatei o primo dele. Eu disse que tinha acabado de saber que Gu morreu, pedi desculpas e fui direto ao ponto:

- Como foi isso, cara? Não acredito que Gu era bandido.

- Ele não era. Morreu por nada.

O que o primo me contou se assemelha a um enredo de fazer inveja aos filmes da máfia. Era tão sórdido que se fosse transformado em ficção seria criticado pela inverossimilhança. Mas como diz Rubem Fonseca, no romance Mandrake: A Bíblia e a Bengala, a verdade não tem a obrigação de "obedecer ao possível". As tramas mais bizarras e perversas são produzidas pela vida real.

Antes de contar como Gu morreu, um pouco da biografia do seu assassino. De tudo que o primo de Gu me disse, nada me deixou mais perplexo do que saber que ele foi morto por um outro amigo de infância meu: Caio, conhecido como “Cabeça”. Um rapaz que jogava gude e brincava de boneco comigo. Cresceu e, depois de uma vida em trabalhos degradantes, acabou seduzido pelo crime. Não vou negar que ele era uma criança violenta. Agredia a irmã brutalmente. Quando entrou no tráfico, rapidamente se tornou um matador sem escrúpulos. Armava emboscadas e matava traficantes adversários para tomar suas “bocas”. Oprimia comerciantes no bairro através de absurdas cobranças de “taxas de segurança”.

Todo mundo sabe aqui no bairro que o seguinte ditado é verdadeiro: “bandido não dura muito tempo”. A carreira no crime leva a inimizades intermináveis, ao constante temor pela vida e, consequentemente, à paranoia. Caio estava sempre alerta. Quando soube que um traficante estava planejando matá-lo, sua paranoia só piorou. Ele ameaçou “tocar o terror” no bairro até que um suposto “alcagueta”, que estaria passando informações sobre ele ao seu adversário, fosse pego. Foi então que alguém teve a brilhante ideia de acusar Gu Ligeirinho de ser o dedo-duro.

- Cara, por que alguém faria isso? - perguntei ao primo de Gu.

- Ninguém sabe, cara. Ninguém sabe quem foi que contou a Caio.

Alguém conseguiu convencer Caio que Gu era o alcagueta. Disseram a ele que Gu estaria passando informações ao traficante rival, como a localização da casa da mãe de Caio. Assim, uma emboscada estava armada para pegar Caio. Ele iria para a casa da mãe, onde seria assassinado pelo seu rival.

Ninguém sabe se esse plano era real.

Mas Caio acreditou. Ele foi até a rua onde Gu morava. Primeiro o agrediu com socos.

- Você é “peru”, rapaz! Vou acabar com sua vida.

Gu correu, Caio foi atrás atirando com seu revólver, sem se importar se os tiros pegariam em pessoas que não tinham nada a ver. Gu Ligeirinho era rápido. Porém, o pânico tomou conta dele. Numa situação de vida ou morte, o que fazer? Ele correu para dentro de um bar. Caio foi atrás. Não havia mais saída. Ele disparou várias vezes contra Gu, que morreu no local.

Agora o detalhe curioso: tempos atrás, eu escutei vagamente uma conversa sobre “alguém que foi morto num bar”. Não imaginava que era meu amigo de infância.

O primo de Gu e outros familiares acreditam que ele “morreu por nada”.

- Não foi ele que disse. - me contou o primo. - Ele nem sabia nada sobre a mãe de Caio.

Eu soube também que o pai de Gu queria vingança. Porém não rolou nada. Ele chamou uns caras de outro bairro para tentar saber quem contou a Caio que Gu teria "falado demais". Pegaram um “pivete”, que deu uma explicação assustadora: como Caio estava planejando aterrorizar o bairro, deram o “nome de qualquer um” para evitar mais mortes. Então, Gu teria levado a culpa para que mais vidas supostamente fossem salvas.

O fato é: ninguém sabe se tal plano contra Caio era real, se existiu tal alcagueta, se Caio estaria pronto para matar mais gente e se Gu levou a culpa para poupar outros. Tudo isso é especulação. A verdade concreta e dolorosa é: meu amigo foi brutalmente assassinado. Assim são os bairros violentos: você pode morrer por causa de bobagem e boataria.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 21/02/2024
Reeditado em 22/02/2024
Código do texto: T8004006
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