E O SONO, CADÊ?
Consulto a hora no visor do celular: uma hora e dezoito minutos. A luz da tela me incomoda, parece mais forte por causa da baixa luminosidade no ambiente. Também me incomoda a cólica intensa, sintoma da virose, que de vez em quando ainda vem, e me contorço, esfregando a barriga.
Ouço o silêncio. Ou os sons do silêncio, que nunca é absoluto. “Tic-tac, tic-tac...”. O relógio na parede da sala não para. Nem os grilos, com aquela cantiga sem fim.
Sobrevoa a casa a rasga-mortalha. Já sei! Vou acordar mortinha da silva! De preguiça, de sono, de indisposição. Apesar do meu ceticismo, mentalizo, em respeito às crenças de minha mãe, um “viva os noivos!”, já que não posso gritar, como deveria ser. Mas a coruja, coitada, a “mensageira da morte”, é praticamente de casa, passa por aqui habitualmente. Mesmo assim, quando possível, eu grito. Mas, hoje, a essa hora da madrugada, eu poderia assustar meu pai, pobre velho.
Gente, meu pai envelheceu! Ainda estou perplexa com essa realidade! Parecia que isso nunca ia acontecer! Está logo ali, no cômodo ao lado, com a porta aberta. Tem o sono de um velho batalhador, que agora lamenta algumas coisas que deixou de viver; e que lamenta também “tanto remédio sem serventia!”.
Não raras vezes, ele tem uns acessos de revolta e diz que não vai mais tomar “essas porras” e que preferia morrer logo. E explico, sem demonstrar alteração, que não é bem assim que funciona. Não temos esse poder de decisão. É preciso aguentar firme. Ele reclama porque não fica bom; não aceita, coitado, que o “bom”, no caso dele, é o que temos.
A luz pisca, o ventilador dá uma parada e, em seguida, volta a funcionar. Questão de segundos. Problema na rede elétrica? Talvez, pois, simultaneamente a isso, alguma coisa papocou nas proximidades, fios da rede, não sei, só ouvi. O fato é que o motorzinho ruidoso segue de boas.
E nos sons do silêncio de agora, me vem a tosse de meu pai, seguida de escarros. Está acordado, suponho. A tosse é mais um fator que me assusta. A essas alturas, certamente ele está todo enrolado em sua manta de oncinha, uma daquelas que comprou em Canindé (uma vez ele me trouxe uma camisolinha de estampa de pica-pau, o passarinho do desenho animado, que toca o terror).
Decido ir ao banheiro, de pés descalços, pra não fazer barulho. Não gosto do arrastado de chinela, nem de ouvir passos no meio da noite. Acho a casa mal assombrada e temo que os fantasmas presentes ali não sejam apenas os meus. Meu pai dorme, enroladinho, como pensei.
Agora, sentada na rede, sigo escrevendo, no pouquinho de luz que me chega, do banheiro. A cabeça cheia de planos, expectativas, anseios e, claro, memórias. E regresso ao “tempo do ronca” pra remoer coisinhas, não consigo evitar.
Escrever a essa hora é uma tentativa de acalmar meus ânimos, desacelerar e, quem sabe, até dormir. Acontece que o sono não vem. Não agora. Mas deixa amanhecer, pra ver.