O Homem Obsoleto

Em uma cidade violenta, frequentar bar pode ser perigoso. É comum encontrar gente exaltada e sóbria disposta a quebrar o pau por motivos fúteis. Imagina, então, se estiver bêbada. Em dias de eleição presidencial, o bar pode se tornar mais perigoso ainda, e não por razões diretamente relacionadas à criminalidade. A defesa incondicional de líderes políticos também está levando à violência física e verbal. A obstinação nessa defesa pode ganhar contornos mais agressivos se o indivíduo estiver consumindo bebidas alcoólicas.

No segundo turno de uma eleição para presidente, eu estive num bar na Barra quando dois homens começaram a discutir. Ambos estavam em lados opostos na disputa eleitoral.

- Seu candidato disse que vai legalizar o assalto!

- Mentira! Fake News!

- Ele é a favor do crime!

- O seu candidato é que é a favor do crime! Ele deu medalha para bandidos!

- Como você pode votar em ladrão!? Você dorme à noite?

- Quem vai votar em ladrão é você!

A cada fala, eles davam um gole no uísque. Estavam cada vez mais alterados emocionalmente.

- Pra mim quem vota em bandido é bandido!

- Então, você está esperando o quê para se entregar!?

- VOCÊ ME RESPEITE, RAPAZ!

- VOCÊ É LADRÃO… SAFADO…

- VOCÊ DISSE O QUÊ? FALE DE NOVO, PRA VOCÊ VER SE NÃO QUEBRO SUA FUÇA, SAFADO!!

Os dois fecharam os punhos. Um deles derrubou um copo no chão acidentalmente, o que chamou a atenção do resto do bar. O barman correu para apartar a discussão. A situação piorou, apesar de não ter rolado agressão física.

- VOCÊ É NAZISTA!

- VOCÊ É QUE É NAZISTA! SEU CANDIDATO É NAZISTA! ELE DEFENDEU HITLER!

- MENTIRA! MENTIR É COISA DE NAZISTA!

Meia hora antes os dois estavam super tranquilos, confraternizavam, riam juntos. Até que começaram a discutir sobre política. Antes do debate acirrar, um deles passou por mim. Perguntou em quem eu votaria.

- Vou anular o voto. Não gosto de política. - respondi.

É claro que eu menti. Eu adoro política, mas costumo dizer a desconhecidos que não gosto apenas para evitar discussão fútil. Eu só conversava sobre política com meu pai e minha namorada. Como agora ela se tornou ex-namorada, a única pessoa no mundo com quem troco ideia sobre a política do Brasil é meu pai. O rapaz não gostou da minha resposta:

- Anular voto só ajuda o candidato bandido. - ele disse.

Deu vontade de perguntar: você está falando de qual dos dois? Mas achei que não seria boa ideia. Depois de ter visto a briga, percebi que estava certo o tempo todo.

- Você é obsoleto, rapaz. - ele me disse.

Confesso que não entendi. Por que eu seria obsoleto? Será que ele quis dizer outra coisa? Então lembrei que até uns dez anos atrás não era muito comum ver pessoas interessadas em política. Eu escutava muito a frase: “todo político é ladrão”. Talvez ele tenha dito que sou “obsoleto” porque eu afirmei que não gostava de política. Defender político com unhas e dentes era coisa de moderno.

Também lembrei de um dos meus episódios favoritos de “Além da Imaginação" (1959): “O Homem Obsoleto”. É sobre um homem que foi preso e condenado por um Estado totalitário. O motivo? Como eu, ele era obsoleto, mas por outras razões. O Estado proibia a religião e os livros. O protagonista prisioneiro era crente em Deus e bibliotecário. Portanto, um “perfeito” obsoleto.

Agora o detalhe singular: o Estado totalitário permite que ele escolha a forma como vai morrer. O condenado também pede (e é atendido) para que a sua execução seja televisionada e que o carrasco seja o único que saiba a forma como ele vai ser morto.

Paro por aqui. Recomendo ao raro leitor que assista.

Minhas reflexões posteriores tentaram relacionar esse episódio com a acusação de obsolescência contra mim. Talvez a fala daquele rapaz tenha algo de totalitário. Eu seria “obsoleto” porque não disse que apoiava o candidato dele. É uma possibilidade plausível. Mas não é possível afirmar com certeza. Pode-se dizer que a discussão agressiva foi uma manifestação de autoritarismo de ambos os lados. No entanto, também pode ter sido simplesmente uma sequência de atos irracionais de duas pessoas irritadas e bêbadas. A acusação de “nazismo” pode ter sido uma banalização oriunda de duas mentes totalitárias. Ou talvez tenha sido um xingamento que veio à cabeça num momento de raiva. Pode ser que depois os dois refletiram e perceberam que passaram dos limites.

Enfim, não quero saber. Vou assistir novamente “O Homem Obsoleto”. Adoro Além da Imaginação.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 20/02/2024
Reeditado em 21/02/2024
Código do texto: T8003409
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