Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#06 – Crônica: “A senhorinha e a poesia” – Renato Cardoso
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Ao longo dos meus 14 anos de ativismo cultural, as crianças sempre foram o maior público do projeto itinerante. Os eventos iam acontecendo, semana a semana, nas escolas. Um dia uma professora entrou em contato comigo para que realizássemos o Diário Itinerante na escola onde ela trabalhava.
Estava organizando, junto UBT – União Brasileira de Trovadores, um workshop sobre trova, pois apresentaríamos o projeto Juventrova para algumas escolas parceiras. Convidei a educadora para assistir a reunião e, de repente, fazer parte do novo projeto.
O Juventrova tinha como objetivo incentivar à escrita através de concursos internos de trovas. Era necessário explicar as instituições como tudo iria acontecer e assim foi feito. O workshop foi realizado pelo grande trovador Gilvan Carneiro da Silva.
Mas voltando a professora… Ela assistiu a reunião e topou realizar o projeto. Tinha algo de especial na escola onde trabalhava. O Juventrova seria realizado com o turno da noite, mas precisamente com jovens e adultos que estavam sendo alfabetizados.
Topamos o desafio. O projeto aconteceu e as trovas foram enviadas para seleção (selecionávamos cerca de 6 a 8 alunos por escola. Eles iriam compor uma coletânea de trovas no final do projeto). As notas foram dadas, os vencedores classificados, medalhas e certificados separados.
Como sempre, num sábado pela manhã, a escola mandou nos buscar para que realizássemos o Diário Itinerante e a premiação do Juventrova. Ao todo, sempre íamos em torno de 5 a 10 artistas, e desta vez não foi diferente.
Chegamos à escola (era uma escola municipal numa região pobre da cidade), fomos muito bem atendidos. Desde a chegada, tanto alunos quanto os profissionais, nos deram todo o carinho e atenção possíveis.
Levaram-nos para uma sala, que estava repleta de alunos, todos maiores de idade (provavelmente acima dos 40 anos). O ambiente estava animado. Eles estavam a nossa espera. A escola havia feito a divulgação do evento ao longo da semana e os conscientizou sobre a importância da presença.
Fiz uma reunião rápida com os artistas, explicando como seria a dinâmica. Já estava pronto para abrir o evento, quando algo me chamou a atenção. Percebi que havia uma movimentação no portão da instituição.
Não me fiz de rogado e fui lá ver o que era. Avistei na esquina, que dava para escola, uma senhorinha em sua cadeira de rodas (estava acompanhada por uma criança). Ela foi se aproximando e notei que estava toda maquiada e sorridente. Assim que me viu, me perguntou: “Filho, sabe me dizer se o evento começou?”.
Peguei o comando da cadeira de rodas, a cumprimentei, me apresentei e disse que ainda não. Ela me confessou que estava empolgada, pois receberia poetas e artistas em sua escola. Ela ainda relatou que estava com medo de não conseguir chegar, pois estava sozinha em casa.
Ela brincou comigo, perguntando se estava bonita, pois havia se embelezado para tal acontecimento. Respondi com carinho que sim e a levei para sala. Acomodei a senhora, que chamaremos de “Dona M”, abri o evento e logo chamei o cantor para animar a festa.
Todos estavam muito felizes, cantavam, acompanhavam com atenção tudo que era falado. Estavam ali por gosto e com gosto. Era gratificante ver senhores e senhoras, já com uma certa idade, buscando aprender a ler para ter uma vida melhor.
O evento ia chegando ao seu final, quando fiz a entrega dos vencedores do concurso do Juventrova. A cada premiação era uma salva de palmas e uma gritaria. Todos estavam felizes pelos amigos que conseguiram se classificar.
Quase três horas se passaram, o projeto foi finalizado e, como sempre, nos convidaram para lanchar. Entre um pedaço de bolo aqui e o suco acolá, sempre conversávamos com alunos que ficavam no pátio.
Dona M se aproximou de mim novamente. Perguntei se havia gostado. Com um sorriso no rosto respondeu que sim, que estava encantada com tudo que tinha terminado de ver e ouvir. Ela pediu para que me abaixasse e me perguntou se poderia tirar uma foto com ela.
Puxei meu celular imediatamente (afinal a honra da foto era minha) e tiramos a foto. Ela estava com um exemplar do Jornal Diário da Poesia (jornal que tínhamos na época). Ela observou que tinha um número de WhatsApp no alto do periódico e me perguntou de quem era. Respondi que era meu.
Ela questionou se poderia conversar comigo via aplicativo e se eu poderia enviar a foto para ela. Disse que sim, sem problemas. Ela agradeceu novamente. Podia ver nela uma alegria diferente, uma empolgação (realmente a arte, naquela manhã, fez a diferença e isso era a nossa grande recompensa).
A criança, que a havia trazido, chegou. Ela se despediu e logo se foi. Eu ainda tive contato por algumas vezes com a Dona M por WhatsApp, mas depois de um tempo o contato foi perdido (problemas com o telefone) e não sei como se encontra aquela senhorinha encantadora que fez daquela manhã de poesia, uma manhã especial.
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Série publicada aos domingos na Revista Entre Poetas & Poesias. Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetas
Leia os outros capítulos da série no link: https://entrepoetasepoesias.com.br/category/sob-o-olhar-de-um-professor/