Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#05 – Crônica: “Uma manhã diferente” – Renato Cardoso

Fonte: https://entrepoetasepoesias.com.br/2022/02/20/serie-sob-o-olhar-de-um-professor-cap-05-cronica-uma-manha-diferente-renato-cardoso/

Em anos de ativismo cultural, pude colecionar uma série de histórias de superação, de carinho e, principalmente, de muito amor. Destinar a alguém o que você tem de melhor a oferecer, é a dádiva, é o dom.

A história que vou me ater a contar a vocês, leitores, é a prova viva de que se doar a alguém se faz necessário. É uma história típica de um país que coloca sua arte em último plano. Vamos a história…

Como de costume, eu sempre recebi convites para ir com o Diário da Poesia (projeto cultural no qual idealizei e desenvolvi ao longo de 10 anos) às escolas de São Gonçalo. O caminho para o convite sempre foi o WhatsApp e daquela vez não foi diferente.

Entre uma aula e outra, percebi que havia recebido uma mensagem de um número, até então, desconhecido. O perfil não mostrava foto e, assim que foi possível, li a mensagem. Era uma orientadora pedagógica de uma escola que ficava em uma região conflituosa do município.

Ela perguntou se eu era do Diário da Poesia, respondi prontamente que sim, que falava com o organizador do projeto. Assim que a orientadora visualizou a mensagem, pediu para me ligar. A autorização foi dada e ela ligou.

A profissional se identificou e perguntou se eu levaria o grupo à escola onde ela trabalha. Perguntei o local e respondi que sim. Senti que houve o certo espanto com a minha resposta e logo a minha dúvida foi sanada (o espanto foi porque eu aceitei prontamente, uma vez que a escola ficava em um lugar de risco e intenso conflito).

Lugares assim que precisam do trabalho dos ativistas culturais. Não titubeei. Mandei mensagem para o grupo, vi os que estavam disponíveis e queriam ir e marquei com a orientadora o dia e o horário (como sempre seria em um sábado pela manhã).

Só fiz uma solicitação, que a escola buscasse a gente em um lugar neutro no Centro de São Gonçalo. O pedido foi aceito de imediato. Então, no dia marcado, alteramos o local de embarque, deixou de ser o Centro e passou a ser no bairro de Trindade, próximo à praça.

Quando chegamos, o ônibus escolar já estava a nossa espera. Éramos em oito artistas. Combinamos com a escola que antes do sarau haveria uma oficina de quadrinhos com um quadrinista local, e assim aconteceu.

No caminho para escola, vimos a precariedade do bairro. A escola era pequena, voltada para o público até o 5º ano do Ensino Fundamental I. Entramos, as crianças estavam chegando. Reparamos que haviam fotos, poemas e informações nossas espalhadas pelas paredes (as professoras já haviam nos apresentado previamente).

Todas as crianças chegaram e a oficina começou. Elas estavam encantadas com a possibilidade de fazer uma tirinha e de tê-la publicada no jornal (nós tínhamos um jornal impresso que levava o nome do projeto).

Uma hora depois, nos reunimos para o sarau. Eram em torno de vinte crianças de 5 a 11 anos, sentadas em círculo e quietinhas. Sabíamos que a quietude não fazia parte da rotina delas, afinal criança é, quase sempre, muito agitada, ainda mais quando em bom número.

O evento foi se desenrolando, a gente sempre pedia a participação deles. Dávamos uma folha e um lápis para cada uma e pedíamos que escrevessem algo. Coisas surpreendentes sempre apareciam.

Foi nessa dinâmica que percebi que uma menina, em torno de seus seis ou sete anos, estava com o semblante fechado e que havia escrito algo. Pedimos que ela participasse. Ela se negou, mas depois de tanto insistirmos, aceitou.

No pequeno texto, ela exaltava a professora, que no canto da sala ia aos prantos, e dizia que não gostava de quando batia o sinal, pois tinha que ir para casa. Vimos que não era o momento para nos aprofundarmos em um assunto tão complicado. Não tínhamos o direito de expô-la.

Continuamos o sarau, eles já estavam mais soltos e participativos. Neste momento, uma das poetisas perguntou quem sabia o que era ballet e, para nossa surpresa, eles não sabiam (não porque ignoravam a informação, mas porque nunca tiveram acesso). Foi então, que através do poema “A Bailarina” de Cecília Meireles, que eles foram apresentados a dança mencionada.

Caminhávamos para o final do projeto, naquela agradável manhã de sábado, e, como de costume, a escola havia preparado um delicioso lanche para nós (sempre fomos muito bem tratados pelas escolas). Lanchamos junto as professoras e aos alunos e começamos a nos preparar para irmos embora.

Despedimo-nos e entramos no ônibus escolar. Antes do motorista sair, escutamos bem baixinho uma voz vindo de fora, falando “Paaarrraaa”, “Espera”. Era uma das meninas que estava na oficina e no sarau. Ela estava com sua mãe, vinham em uma bicicleta.

Paramos e esperamos para ver o que queriam. A menininha, chamaremos de Cê (guardem bem esse nome, pois ela aparecerá novamente em textos posteriores), chegou perto do ônibus e disse que queria comprar uma revistinha em quadrinhos e que tinha ido em casa falar com a mãe.

Ela tirou uma nota de 10 reais do bolso, víamos que aquele dinheiro faria falta e que a mãe queria realizar a vontade da filha. Então, pegamos um exemplar de cada revista que o quadrinista levou e fizemos um rateio entre nós. Demos as revistas a Cê e pedimos a ela que compartilhasse, após a leitura, com os amigos.

Ela ficou toda feliz, a mãe agradeceu e partimos. Voltaríamos nos anos seguintes, onde pudemos acompanhar a história de Cê. Mais um sábado realizado, mais uma história para nossa bagagem, mais um aprendizado tirado. Por essas histórias que íamos as escolas aos sábados pela manhã. Para alimentar sonhos, para despertar conhecimentos, para mostrar que existe um mundo muito grande que eles podem conhecer. Valeu a pena.

_____________________________

Série publicada aos domingos na Revista Entre Poetas & Poesias. Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetas