Série: “Sob o olhar de um professor” – Cap.#03 – Crônica: “Trato feito” – Renato Cardoso
Fontes: https://entrepoetasepoesias.com.br/2022/02/06/serie-sob-o-olhar-de-um-professor-cap-03-cronica-trato-feito-renato-cardoso/
Essa história não passa pelo ativismo cultural, no qual desenvolvo desde 2009. Essa história é a vida do professor, daquele que pega três turnos para ter uma vida, minimamente, tranquila.
Ao longo da vida como educador, eu pude atuar em praticamente todos os segmentos, horários e com todas as idades. Lecionei para alunos de 3 a 80 anos. Exerci outras funções, como coordenador (tive três passagens pelo cargo). Como sempre o nome da instituição e do aluno não serão ditos, mas a história é real (é a mensagem que importa).
Em 2016, eu atuava como coordenador da Educação de Jovens e Adultos de uma instituição privada. O turno da noite sempre foi muito interessante, na verdade, um desafio. Numa noite como outra qualquer, estava com meu inspetor no pátio da escola (ficava sempre lá, principalmente na entrada e na saída para desejar boa aula e depois bom descanso, achava isso importante, criava vínculos).
A pedido dos donos do local, orientava sempre a “tia da cantina” a deixar uma garrafa de café à disposição dos alunos, pois muitos chegavam cansados do trabalho e a bebida servia para levantar o ânimo e espantar o sono.
O corpo discente era formado por um grupo muito heterogêneo, indo de jovens de 16 anos a adultos de 70 e poucos. Os grupinhos eram os mais diversificados possível. Os assuntos então… Muitas risadas, mas muitos problemas. Cada noite era uma surpresa, não tinha como prever o que iria acontecer.
Naquela noite, um grupo de jovens alunos chegaram à escola, como sempre, passaram por mim desejando boa noite, e foram para cantina tomar o café rotineiro. Existia uma regra entre todos nós. O sinal batia às 19h, eles não podiam passar de 19h20 fora de sala. Mas já eram 19h30 e eles estavam lá, proseando e rindo.
Então, não pensei duas vezes e, como quem não quer nada, fui de encontro a eles. Peguei meu café e brinquei com todos, perguntando o porquê deles estarem ali. Entre risadas e brincadeiras, um aluno (chamaremos de A) se destacou. Sempre com seu jeito marrento de boa pessoa, ele se direcionou a mim e me questionou: “Renato, preciso da sua ajuda para mudar de vida. Eu só dependo de você”.
Achei aquilo um tanto quanto forte, sabia da história de vida dele, que não era nada fácil. Continuei com o papo e perguntei o que poderia fazer. De bate pronto, ele respondeu: “Estou no último semestre e preciso passar, caso contrário eu paro e desisto de vez”. Tentei manter a conversa num tom mais leve possível. Disse para ele fazer a parte dele e estudar.
Nesse momento, estávamos na metade do semestre. Eles subiram e aquilo ficou na minha cabeça (senti um certo peso nos ombros e me questionei se ele realmente merecia). O semestre foi passando e chegamos na semana das provas. Tudo foi realizado com perfeição, sem contratempos.
Entre o último dia de provas e a entrega dos resultados, eu tinha 4 dias para realizar o conselho, separar as provas, lançar as notas e conferir os boletins. No conselho de classe (realizado, sempre, um dia depois das provas), quando chegou a vez do aluno A, tive a notícia que ele não havia passado em Química (matéria considerada difícil por todos). Conversei com os professores e autorizei o professor da matéria a passá-lo. Assim foi feito.
Toda a burocracia do final do semestre foi cumprida (era muito trabalhoso). Chegou à noite de entrega dos resultados, geralmente eu não ficava na escola, deixava por conta do meu inspetor, mas naquela noite eu fiz questão. Só entregaria um resultado, o do aluno A. Fiquei na minha sala esperando-o chegar, até eu estava ansioso. Por volta das 19h, ele chegou com os amigos e o inspetor o mandou passar e pegar o resultado comigo. O único que passou.
“A” bateu a minha porta, mandei ele entrar e sentar. Como qualquer pessoa, ele me questionou o porquê de somente ele pegar o resultado comigo. Então comecei a falar: “Vamos lembrar do que me disse há alguns meses? Que dependia de mim para mudar de vida? Então, veja seu resultado. Você está aprovado. Parabéns. Minha parte do trato eu cumpri e quando pegar as provas você vai ver como. É a última vez que nos vemos na escola e possivelmente será a última que nos veremos na vida. Não sei se o que você me disse é real, mas o desejo de vê-lo numa vida melhor, me fez cumprir o trato. Você pode achar que fui bobo, ingênuo em acreditar. Por fim, você pode nem mudar de vida, mas isso agora fica a cargo da sua consciência”.
Ele ficou sério (nunca tinha o visto assim), parecia que ninguém nunca tinha feito nada por ele. Agradeceu-me e saiu. Peguei minhas coisas e fui embora. Passei pelos demais alunos, alguns eufóricos pelo bom resultado, outros preocupados pela recuperação ainda a frente.
Fato é que pensei que nunca mais o veria. Até que um belo dia, necessitei ir aos correios e ao sair, fui pegar o ônibus para casa. Chegando ao ponto, ouvi alguém me chamando: “Renaaatoo”. Reconheci a voz, era o aluno “A”. Ele estava no ponto de táxi com uniforme de taxista. Olhou pra mim, sorriu e disse: “Tá vendo, mudei de vida”. Ainda brincou perguntando se queria uma carona, respondi só se fosse de graça, mas chegou um cliente e ele se foi. Nunca mais o vi.
Aquele dia valeu para toda eternidade, afinal ele mudou de vida. É tão bom quando apostamos em alguém e esse alguém obtém o sucesso. Peguei meu ônibus, fui para casa feliz e nunca mais esqueci essa história.
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Série publicada aos domingos na Revista Entre Poetas & Poesias. Instagram: @professorrenatocardoso / @literaweb / @devaneiosdumpoeta / @revistaentrepoetaswww.entrepoetasepoesias.com.br/literaweb