Entre Sem Bater - Uma Ideia

Alphonse Daudet disse:

"... a melhor maneira de impor uma ideia aos outros, é fazer-lhes crer que é deles que ela parte ..."(1)

Muitos personagens, principalmente escritores franceses, souberam inquestionavelmente, com maestria, transpor o mundo real para a literatura. Com toda a certeza, Alphonse Daudet não é um dos mais famosos posto que um seu discípulo conseguiu mais notoriedade. A capacidade de pensamento e reflexão destes autores, durante um período revolucionário era realmente notável. É provável que uma ideia, naqueles tempos, provocasse mais do que revoluções na cabeça das pessoas.

UMA IDEIA

A frase de Daudet exige, sem dúvida, uma leitura com muita reflexão e revisão dos nossos comportamentos, atitudes e expectativas(*). Normalmente, queremos que uma ideia nossa tenha reconhecimento, acima de tudo e do que os outros pensam. É normal em uma sociedade digital como a que vivemos, alguém copiar uma ideia e ignorar que não existe ninguém que pensou o mesmo antes.

LAVOISIER ESTAVA CERTO

Podemos tratar o que a humanidade definiu como "Princípio de Lavoisier" ou "Lei de Lavoisier"(2) como o maior aforismo ou paráfrase da história. Desde que o físico-químico revolucionou alguns conceitos, sua ideia original transformou o planeta. Assim sendo, o que era para ter uma aplicação transformou-se em uma ideia que tem aplicação prática entre os humanos. Surpreendentemente, as transformações tornaram-se uma coisa comum e a maioria, atualmente, nem se preocupa com qualquer teoria antiga.

No mundo contemporâneo, a busca incessante por ideias originais tornou-se uma tarefa árdua. À medida que a sociedade se depara com um cenário de constante interconexão e compartilhamento de informações, originalidade inexiste. O princípio de Lavoisier, numa livre tradução, seria:  "... na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma... " um pensamento lapidar. Entretanto, essa proposta mostra-se num desvirtuamento preocupante e fora de controle nos meios digitais.

Nesse contexto, a apropriação de uma ideia qualquer é uma realidade alarmante, com indivíduos aproveitando-se da criatividade alheia, despudoradamente. Como se não bastasse a falta de reconhecimento, agora a inteligência artificial está aí para corroborar a lei.

REVOLUÇÃO

Como escrevi sobre a época em que viveu Daudet, a mesma ideia vale muito mais para Lavoisier. Fico imaginando como eles se comportariam em plena era da revolução informacional e dos farsantes de rede social.

No âmbito das redes sociais, observa-se uma prática cada vez mais recorrente de pessoas adotando ideias alheias como se fossem suas. Desta forma, muitas vezes, sem o menor constrangimento, surgem com uma ideia ou alguma proposta como se fosse algo original. O fenômeno não se restringe apenas à utilização de conteúdo, mas estende-se à falsa autoria de pensamentos e conceitos.

Essa atitude revela uma sociedade em que a obtenção de reconhecimento muitas vezes supera a ética e a honestidade intelectual.

E as coisas estão fora do controle, com alguns comportamentos completamente sem análise de consequências. Por exemplo, entrei num concurso literário que exige que as pessoas não utilizem nada de inteligência artificial. Tomemos este texto aqui como paradigma, consultei três plataformas de IA para obter a informação sobre a frase de Lavoisier. O trabalho que eu teria sem as ferramentas (Google, Wikipedia, Britannica etc.) seria quase impossível colocar afirmações reais. Desde que surgiram estas plataformas, utilizo verificadores de plágio e até mesmo a possibilidade de uso de IA. É, sem dúvida, quase impossível termos correção de uma frase ou um texto em que alguma coisa não seja uma repetição.

A tal revolução informacional está cerceando a criatividade ou queremos descobrir a antítese à lei de Lavoisier?

IDEIAS, MARCAS E PATENTES

É incrível como libertários e anarcocapitalistas e sua confusão mental(3) fazem as pessoas acreditarem até nas mentiras que "criam". Como se não bastasse, quando usam mentiras de segunda mão a coisa fica um pouco pior.

Uma das causas desse comportamento está na dificuldade de proteger certas ideias por meio de registros como marcas ou patentes.

Enquanto algumas criações podem ter proteção legal, outras permanecem vulneráveis à apropriação, gerando um ambiente propício para a falta de escrúpulos. A instantaneidade das redes sociais, por sua vez, amplifica a disseminação de ideias sem a devida checagem de autenticidade. Desta forma, alimenta-se e cresce a cultura da apropriação de uma ideia ou do estelionato ideológico.

É necessário compreender que a apropriação de uma ideia não se limita, sobretudo, apenas à falta de reconhecimento. Muitas vezes, transcende para a distorção e manipulação de ideias e das pessoas. A disseminação de informações falsas, com atribuição errônea a determinados indivíduos, é um exemplo claro desse fenômeno.

Nas redes sociais, a viralização de conteúdo ocorre, muitas vezes, sem confirmação de veracidade. Mesmo que apresentemos um link desmentindo uma proposição, avançam as ideias distorcidas, que ganham espaço e influência.

FALSIDADE E HIPOCRISIA

Esse desvirtuamento do princípio de Lavoisier reflete uma sociedade de culto à visibilidade, à hipocrisia e à falsidade. Em outras palavras, a fama, mesmo efêmera, sobrepuja a valorização do trabalho original e honesto. A pressão por likes, compartilhamentos e seguidores leva a maioria de seres estultos a sacrificar a integridade intelectual em prol do reconhecimento fugaz.

A ausência de uma cultura de respeito à autoria e apropriação ética de ideias contribui para a criação de um ambiente digital tóxico. Nestes ambientes (grupos e plataformas) a honestidade intelectual posta-se em um segundo plano ou inexiste.

Adicionalmente, é importante destacar que o estelionato não apenas prejudica os criadores originais, mas compromete a qualidade do conhecimento. E alguns destes perfis chegam a afirmar que este tipo de comportamento é alguma espécie de sabedoria.

Quando uma ideia sofre distorção ou tem seu uso de maneira fora do contexto, o conhecimento e a informação se perdem. Por isso, evoluem os ciclos de desinformação e ignorância que assolam integralmente a nossa sociedade.

A confiança nas fontes de informação e a credibilidade das redes sociais, como veículo de conhecimento fica à prova.

BOM COMBATE

Desde que comecei com atividades profissionais na Internet, dediquei-me às questões de segurança da informação. Entretanto, há muito tempo atrás, ao admoestar, reservadamente, uma pessoa sobre compartilhar um e-mail mentiroso, decidi mudar. Esta pessoa disse que eu não tinha nada a ver com ele compartilhar uma mentira, e que eu deveria cuidar da minha vida. Certamente, a orientação para chamarmos atenção das pessoas reservadamente e elogiarmos em público é uma grande falácia.

Desse modo, venho adotando estratégias diferentes em função do conhecimento que vamos adquirindo sobre estes comportamentos tóxicos. É, acima de tudo, assustador o que presenciamos nas redes de conhecidos, vizinhos, amigos e familiares. O desvio de caráter(4) que constatamos seja para contrapor uma ideia ou para refutá-la é algo aterrorizante.

Para combater esse desafio, é imperativo que toda a sociedade adote uma postura mais responsável e crítica em relação aos conteúdos que dissemina.  Além disso, as plataformas de redes sociais deveriam implementar medidas que coíbam a disseminação de informações falsas. Contudo, parece que as pessoas e as plataformas não se interessam em promover um ambiente mais ético e confiável.

O bom combate tem poucos defensores e os pensamentos de Umberto Eco, Nélson Rodrigues e outros prevalecem ...

PRÁTICAS RESPONSÁVEIS

Para garantir o uso ético de ideias envolve uma série de práticas responsáveis. Aqui estão algumas sugestões, dentre outras tantas, que deveriam ser prática comum, mas não são:

1. Dê crédito onde o crédito é um dever legal e moral. Sempre que usar uma ideia que não é originalmente sua, faça o possível para dar crédito à fonte original. Isso se faz através de citações, referências ou simplesmente mencionando a fonte.

2. Peça permissão quando necessário. Se você planeja usar uma ideia de maneira significativa ou lucrativa é necessário obter permissão do detentor dos direitos autorais. E obedecer as licenças de uso como Creative Commons e outras.

3. Evite o plágio. O plágio é a prática de usar o trabalho de outra pessoa sem dar o devido crédito. Isso é antiético e, em muitos casos, ilegal, entretanto, existem muitas ferramentas gratuitas para detectar plágio(5).

4. Verifique as informações. Antes de compartilhar uma ideia, especialmente nas redes sociais, verifique se a informação é verdadeira. Compartilhar informações falsas pode causar danos e confusão e quem assim o faz é desonesto.

5. Seja transparente. Se você está modificando uma ideia existente ou combinando várias ideias para criar algo novo, seja transparente sobre isso. A inovação sempre envolve a construção sobre uma ideia ou trabalho já existente. Inquestionavelmente, não há nada de errado nisso, desde que seja de forma transparente.

RESPONSABILIDADE ÉTICA

Vivemos em uma era de compartilhamento de uma ideia que pode atingir uma escala sem precedentes e sem controle. Embora isso possa levar à apropriação e ao compartilhamento de ideias falsas, deveria oferecer oportunidades para a colaboração e a inovação. A responsabilidade de usar essas oportunidades de maneira ética e respeitosa recai, sobretudo, em nós mesmos.

Eventualmente, assim como na Lei de Lavoisier, é comum usarmos aforismo, paráfrases, analogias, basta reconhecer que se faz isso. Lembre-se, a ética no uso de ideias não é apenas sobre evitar consequências legais. É sobre respeitar o trabalho e o esforço dos outros e contribuir para um ambiente de compartilhamento de ideias e não ser um mau caráter.

Não há nada melhor do que uma ideia nossa ser benéfica para muitos, mesmo que pareça de outra pessoa.

"Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*) É frustrante ver uma ideia que confidenciamos a alguém ter seu uso e nenhum reconhecimento de quem copiou existir. Os exemplos que tenho são inúmeros, e suscitam até mesmo a criação de vários textos, como este.

(1) "Entre sem bater - Alphonse Daudet - Uma Ideia" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/02/19/entre-sem-bater-alphonse-daudet-uma-ideia/

(2) "Conservação de Massa - Wikipedia" em https://pt.wikipedia.org/wiki/Conserva%C3%A7%C3%A3o_da_massa

(3) "Anarcocapitalismo - A confusão mental" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2016/05/06/anarcocapitalismo-a-confusao-mental/

(4) "Entre sem bater - Coringa - Desvio de Caráter" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/05/11/entre-sem-bater-coringa-desvio-de-carater/

(5) "Plagiarism Check" em https://smallseotools.com/plagiarism-checker/