Coincidência Coincidente

Janeiro de 2004. Minha esposa e eu fomos a passeio a Buenos Aires, três dias, e Bariloche, quatro dias. Primeira vez dela na capital argentina. Correu tudo bem, viciamos no bife de chorizo e no bife ancho.

Visitamos El Caminito, Mercado de San Telmo, onde se encontra de tudo. Ficamos impressionados com as antiguidades, algumas de valor, mas outras quinquilharias que já deveriam ter ido para o lixo. Cito: latas fechadas de grapette empoeiradas, não amassadas, de 1963, para colecionadores, diziam, cadeados e fechaduras enferrujados e emperrados com certeza.

Excelentes dançarinos de tango na rua lateral do mercado, ao som de um piano em pedaços, mas, incrível, com bom som.

Calle Florida, muita gente apressada, lembrei-me da Rua Direita em São Paulo.

Teatro Colón, magnífico.

O histórico Obelisco, de 1936, nome impróprio para seu arquiteto Alberto Prebish que preferia chamá-lo de Monumento. Referência da cidade, quase foi demolido em 1939 por decisão da Câmara Municipal, mas o prefeito revogou após protestos de muitos. Provavelmente, disputa política.

Fiz questão de ir a Calle Corrientes, 348, como tantos outros meus contemporâneos. Fiquei um pouco decepcionado. Não encontrei referências ao aclamado berço do tango, a Carlos Gardel. Algum desavisado não iria supor que ali, em bom trecho da avenida, residia muita história da arte tangueira. Que eu saiba os argentinos não são conservadores, puritanos, a ponto de deliberadamente esconder detalhes do histórico local e da má reputação da época.

Enfim, três dias prazerosos.

Partimos para San Carlos de Bariloche.

Os quatro dias, completos, foram de vento frio e chuvisco permanente, pouco mais que a nossa conhecida garoa.

Mais deliciosos bifes de chorizo, bifes anchos, chocolate, lago Nahuel Huapi, isla Victoria etc., etc. Colocamos um cartão postal para nossas filhas que nunca chegou. Serviço postal ruim e nem sempre honesto, me disseram. Resultado da crise econômica.

Visitamos Cerro Catedral, a famosa estação de esqui. Completamente vazia. Frio. Chuviscando. Sem neve alguma, em janeiro. Pico da temporada ocorre em junho. Após vista geral do local, algumas fotos, fomos a uma pequena lanchonete. Clientes além de nós, três em uma mesa. Sentamo-nos em outra, mas logo fomos chamados a sentar com eles.

Uma argentina, trinta e poucos anos, de poucas palavras, bancária, um tanto amargurada. Depois de dez anos de Menen, frustrações com a crise econômica. Seguiram-se algumas trocas de presidentes a cada um ou máximo dois anos. Relatou seu descontentamento com o rumo do país. Tentei animá-la falando que gostamos de Buenos Aires. Antes que acrescentássemos algo, emendou que estava cansada daquele Obelisco. Mencionou que deveria ser demolido. Monumento inútil. Será que a contenda política de 1939 continua viva? Pensava em se mudar para o Brasil.

As duas outras pessoas, um casal de espanhóis. Ele bastante falante. Primeiro nome não comum.

Médico, da família real espanhola, orgulhoso disso e de sua profissão. Falou bem da Espanha e mal de alguns, exaltou a Argentina. Fizeram várias perguntas sobre o Brasil. Demos informações positivas, no geral. Tinham planos para conhecer o Brasil.

Conversa agradável que durou cerca de uma hora. Saímos. Cerro Catedral vazio. Apenas os cinco e o motorista da van que nos levou de volta ao centro da cidade.

O tempo passou e chegamos a Dezembro de 2017.

Minha primogênita, morando e trabalhando em Madri.

Precisou de uma cirurgia da tireoide. Somente pude vê-la em janeiro.

Contou-me detalhes da intervenção cirúrgica e sobre o bom médico que a operou. Ele era médico da família real espanhola. Nome? Putz! Era o próprio de Cerro Catedral, de catorze anos atrás, encontro de apenas uma hora. Como pode? Ficamos perplexos. Mais do que uma coincidência.

Contei para algumas pessoas este acontecimento. Em geral, retrucavam com alguma coincidência ocorrido com eles. Mas reconheciam que este meu caso era mais impressionante. Um amigo ficou exultante. Disse que era uma coincidência coincidente. Como? Explicou que coincidência é algo mais corriqueiro, encontrar um amigo que não vê há muito tempo no dentista, você falar ao mesmo tempo com outra pessoa uma frase exatamente igual, sem que tenha havido combinação. Esta não. Conhecer pessoas em um país que não é o seu, por não mais que uma hora e, depois de vários anos, esta pessoa opera sua filha em outro país! É muito mais relevante. É uma coincidência coincidente.

Coincidência coincidente! Não achei muito válida a explicação, mas considerei que seria um bom título para este meu escrito.

O que penso de coincidências?

Busquei literatura sobre o assunto.

Comum encontrar explicações de cunho religioso, espirituais e coisas tais como: nada é por acaso; são eventos sem relação de causa e consequência; interpretar coincidências é considerado comportamento supersticioso.

Mas, Carl Jung desenvolveu o conceito de sincronicidade como sendo a experiência de ocorrerem eventos que coincidem e são significativos para os envolvidos que vivenciaram o que denominou uma "coincidência significativa" (telefono para meu amigo?). E daí, partiu para desenvolvimentos dos conceitos de Arquétipo e Inconsciente Coletivo.

Infelizmente, o doutor espanhol saiu de férias após a cirurgia da minha filha e não pude dar conhecimento a ele de nossa coincidência significativa.

Edson Gomiero
Enviado por Edson Gomiero em 18/02/2024
Código do texto: T8001832
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