DO LEBLON AO VIDIGAL, VIA GRAJAÚ
Mal começara o ano de 1982 e uma ideia fixa me acometera, precisava urgentemente encontrar um lugar para morar, a vida agora generosamente abria aquele momento inadiável de querer morar com a pessoa amada.
Tudo passara muito rápido, mal nos conhecemos, e a intimidade chegou para ficar, não fazia mais sentido postergar o momento de juntar os trapos. Eu com 28 anos e ela com 23 anos somávamos uma boa ideia.
Embora estivéssemos empregados, o somatório de renda não nos permitiria alugar um imóvel na Zona Sul. Nesta época, eu tinha a felicidade de residir no Leblon, aliás, um bairro bem diferente do que conhecemos agora. Não são todos moradores que efetivamente conseguem desfrutar do muito que o bairro oferece.
Sempre tive o hábito de acordar cedo, e isso no Leblon me permitia desfrutar de uma praia para poucos. Adorava caminhar por suas arborizadas ruas, frequentar o Cine Leblon e tomar cerveja com amigos nos pés sujos que ainda não tinham fechado suas portas. E os restaurantes do baixo? Aquilo não existia e Hermínio Bello de Carvalho compôs e Dóris Monteiro interpretava essa ode dedicada aos encontros em bares do Leblon.
Mudando de conversa onde foi que ficou
Aquela velha amizade
Aquele papo furado todo fim de noite
Num bar do Leblon
Meu Deus do céu, que tempo bom!
Tanto chope gelado, confissões à beça
Meu Deus, quem diria que isso ia se acabar
E acabava em samba
Que é a melhor maneira de se conversar
Mas não teve jeito, fui parar no planejado e arborizado bairro de Grajaú, Zona Norte da cidade, mas não por muito tempo. Passava os dias ditos úteis lá, mas nos finais de semana acabava migrando para casa da minha mãe. Mesmo sendo na minha concepção urbanística, o melhor bairro pós túnel, não via à hora do retorno.
E foi assim que consegui juntar o útil ao agradável, em outras palavras, voltar a sentir a maresia, e não precisar pagar tão caro por isso. Em 1983 passei a residir na Estrada do Tambá, depois rebatizada como Avenida João Goulart, que vem a ser a principal artéria do bairro do Vidigal, que na época separava o tecido formal do informal. Até o meu prédio, o último do lado esquerdo da via e todo o lado direito faziam parte do asfalto, na palavra dos moradores, o restante se considerava favela.
O prédio escolhido fazia parte de um conjunto de quatro edificações, que durante anos serviu de moradia para artistas descolados, ou mesmo daquele grupo de intelectuais sem muitos recursos. Para dar dois exemplos bem esclarecedores: o proprietário do imóvel que aluguei era o Dory Caymmi e meu vizinho de porta era o José Lewgoy.
O apartamento de quarto e sala esbanjava charme. Você entrava por um corredor que levava a uma ampla sala, ao fundo, um conjunto de janelas envidraçadas, que dependendo da hora do dia, gerava uma cor diferente nas paredes laterais. Neste andar, além da sala, contava com espaçosa cozinha e também área de serviços. Logo na entrada, uma escada retilínea levava ao andar inferior, composto por um quarto que rebatia o espaço da sala e um banheiro espaçoso. Aqui também um conjunto de janelas de vidro permitia uma visão do jardim do prédio, que como pano de fundo, fazia a junção de céu e mar.
Nesses ambientes, durante o dia, praticamente prevalecia o azul nas paredes laterais, como reflexo do céu e do mar que compunham a moldura da área externa. O nascer do sol oferecia um espetáculo único, a depender da formação de nuvens no horizonte, pois o astro rei emergia do mar diante de nós, e não foram poucas as vezes que acionava o despertador, para assim assistir de camarote esse mutante fenômeno diário.
Os finais de dia também tinham suas singularidades, mas guardavam certa distância, quando comparado ao alvorecer. Outro memorável espetáculo provinha das chuvas de verão, com suas descargas elétricas, que muitas vezes se chocavam contra a água do mar. Já em noites de calmaria, luzes da Ilha do Farol produziam um fecho de luz, ora branco, ora vermelho, que quebrava aquela monotonia noturna do mar aberto.
Embora o movimento do tráfico fosse discretíssimo, ele já existia no bairro, mas não incomodava. Problemas mesmo ficavam por conta daqueles dias de muita chuva, quando a Estrada do Tambá se transformava em um fétido rio, onde muita coisa rolava ladeira abaixo, muitas vezes impedindo até a circulação de veículos.
Para quem aprecia a maresia, o bairro do Vidigal propicia a seus moradores a inevitável troca de praticamente todos eletro eletrônicos da casa, no prazo máximo de dois anos, mas esse espaço de tempo pode ser abreviado, caso não se incorpore capas de plástico para vedar equipamentos. O choque das ondas contra rochedos na Avenida Niemayer proporciona a suspensão de partículas minúsculas de sal que flutuam até impregnarem tudo de sal, que se tornam visíveis nas grandes janelas dos apartamentos.
Hoje, infelizmente, tudo mudou, a favela se expandiu tanto em densidade, como em território e o tráfico agora sob a tutela de comandos, se descolou da comunidade e acredito que nem mesmo esse conjunto de prédios tenha conseguido preservar seu charme do passado.