A piada do opositor
Se um preso quebrar o pau com um carcereiro por causa de uma caneta que lhe foi tomada, o raro leitor concordaria que seria uma reação desproporcional? Depende das circunstâncias, é verdade. Se fosse uma cadeia digna, com três refeições, bons tratos e cela limpa, talvez fosse exagerado querer brigar por isso. Na verdade, seria sinal de que o preso estava mimado demais. Tão mimado que não aceitava nem que lhe tirassem a caneta.
Mas e se for uma prisão atroz localizada no Ártico? Talvez pudéssemos até compreender a reação desmedida. Viver nas piores condições possíveis, e sem existir nenhuma esperança de sair dali, pode deixar qualquer preso pirado, até aqueles que são estoicos.
Foi num lugar como esse que aconteceu o relato acima. Um preso político recebeu a punição de ficar na solitária, porque brigou por uma caneta. No entanto, chama mais atenção o que ocorreu na audiência em que esse mesmo preso teve com um juiz, por causa da briga. No diálogo com “vossa excelência”, o prisioneiro “esquentado” soltou uma piada, como se estivesse num ambiente descontraído e não numa prisão degradante reservada aos inimigos do regime:
- Excelência, eu vou lhe mandar meu número pessoal de conta bancária para que o senhor use seu enorme salário para aquecê-la, porque estou ficando sem dinheiro.
Observe a linguagem figurada: “aquecê-la”. É uma sútil referência ao local onde ele estava preso. Não era apenas o preso político que estava no “frio”. Sua conta bancária também estava. Em contraste, o juiz que decidiu sua punição estava no conforto, num lugar supostamente aquecido. Foi um humor feito com sutilezas.
No dia seguinte, esse preso estava morto. O nome dele? Alexei Navalny, de 47 anos, um dos maiores opositores do regime de Vladimir Putin, o autocrata russo.
A piada de Navalny na audiência passaria totalmente despercebida se não fosse feita na véspera da sua morte. Alguns podem exaltar a firmeza do homem, pois fez humor numa situação horrível em que se encontrava: cumpria 30 anos, resultado de várias condenações em tribunais putinistas e farsescos, numa prisão com condições duríssimas e ainda seria punido com 15 dias de confinamento solitário. Há uma frase do humorista português Ricardo Araújo Pereira, presente na obra “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, que pode ser perfeitamente aplicada nesse caso: “o humor pode ser […] uma estratégia para reagir ao sofrimento”.
Ele estava numa condição em que era muito complicado se adaptar. O humor ajuda a nos afeiçoarmos ao mundo ou à situação em que nos encontramos. O humor é uma forma de lidar com a adversidade. Navalny parece que percebeu isso. A descontração diante da punição era inútil, pois não mudaria nada: ele continuaria preso e ainda acabaria na solitária. Porém, o humor é uma “espécie de mau perder”, como escreve Ricardo Araújo Pereira. “É uma atitude de valor equivalente à da criança que, depois de levar uma palmada, diz, de lágrimas nos olhos: ‘não me doeu’”, afirma o humorista português.
O sistema político putinista impede a ascensão de qualquer opositor que possua discursos inflamados contra o Kremlin. Se um político consegue apoio para disputar a eleição, e possui uma retórica contundente contra o atual governo russo, tem a candidatura barrada por algum motivo: inventa-se crimes, cria-se argumentos jurídicos falaciosos e até mesmo alega-se “erros técnicos”.
Mesmo que o candidato seja totalmente limpo, a criatividade dos asseclas de Putin não tem limites. O político pode ser tão honesto que nunca foi capaz de estacionar em vaga para deficiente. Não importa. Vão encontrar uma forma de barrá-lo:
- Sinto muito, senhor. Sua candidatura foi indeferida.
- Mas como?! Não fiz nada de errado. Não há nenhum erro técnico.
- Os vizinhos reclamaram que o senhor colocou músicas de The Who com um volume muito alto, o que incomodou todo mundo no seu prédio. É o suficiente para entendermos que o senhor não tem condições de concorrer.