Entre Sem Bater - Povo Sofredor

Bezerra da Silva disse:

"... todo dinheiro gasto pelo homem comprando arma para a guerra, que só traz a dor, daria para matar a fome de todo povo sofredor ..."(1)

Se tem uma pessoa que sempre falou em nome de um povo sofredor era o "Embaixador dos Morros e Favelas", Bezerra da Silva. As letras de suas músicas refletem, com toda a certeza, tudo aquilo que as comunidades(*) - nome chique que culpados usam - sofrem. A fina ironia e sinceridade do grande compositor deveria merecer estudos sociocomportamentais que poucos teriam coragem de fazer.

POVO SOFREDOR

Autor de frases que são verdadeiros pensamentos filosóficos do morro, Bezerra da Silva teve a compreensão de poucos da mídia. Por muito menos, músicos de qualidade bem inferior, aparecem muito mais e se tornam, atualmente, milionários com as redes sociais. Desse modo, é compreensível que musiquinhas sem sentido e sem qualidade dominem as plataformas digitais. É provável que o tal povo sofredor prefira tapar o sol com a peneira, e ignorar o dinheiro que se doa para estes farsantes digitais.

Surpreendentemente, num mundo que testemunhou a destruição e as cicatrizes da 2a. Guerra Mundial, a humanidade aprendeu muito pouco. É provável que os grandes irresponsáveis pelo atual estado de inanição mental sejam nós mesmos, que fugimos da nossa história. Como se não bastasse os horrores das guerras, vivemos uma explosão de pobres de espírito(1), "defensores" da ignorância e do preconceito.

GASTOS COM AS GUERRAS

Desse modo, registros atuais revelam uma triste realidade: os gastos com armas de guerra atingiram níveis alarmantes recentemente. As grandes potências, com as guerras entre Rússia e Ucrânia, além do conflito Israel-Palestina, superaram todas as previsões. Os países mais ricos gastaram mais até mesmo nos períodos mais intensos da Guerra Fria.

Enquanto isso, em um paradoxo perturbador, muitos indivíduos, neste mundo de conflitos insanos, persistem em ignorar o povo sofredor. Em outras palavras, encontram refúgio em grupelhos nas redes sociais, financiando uma ilusão que nega a existência do sofrimento e da dor.

Na busca por uma suposta segurança, as potências mundiais comprometem não apenas suas economias, mas a segurança e o bem-estar de seus cidadãos. Este é um cenário que ignora os fantasmas do passado, quando o mundo esteve à beira do abismo. Certamente, as vidas de milhões e a insegurança social que vivemos em nome de ideologias conflitantes não comovem nem o povo sofredor.

CAMPOS DE BATALHA

Nesse ínterim, de guerras religiosas e pelo poder econômico, os campos de batalha se diversificaram e mudaram o cenário de guerra. O palco agora conta com alta tecnologia de armas de guerra e a informação , ou a falta dela, virou protagonista entre milhões de pessoas. É assustador como o idiota da aldeia escolhe um lado numa guerra entre judeus e palestinos sem nem saber o motivo da guerra.

Enquanto isso, nesses campos de batalha contemporâneos, o povo sofredor enfrenta a realidade brutal das guerras virtuais. Vítimas inocentes, deslocamentos em massa e a destruição de comunidades inteiras são as consequências amargas dos conflitos reais e virtuais.

O contraste entre os gastos colossais com armamentos e as cenas de devastação humana suscita uma pergunta incômoda. Por que a humanidade permite que o ciclo de violência persista, apesar da dor deste povo sofredor?

BOLHAS DIGITAIS

Uma resposta parcial que justifica essa insanidade está presente nas redes sociais, onde muitos encontram um refúgio ilusório. Por isso, bolhas digitais, com suas narrativas e realidades, criam a ilusão de uma normalidade que esconde as dores do mundo. Enquanto o povo sofredor enfrenta os horrores da guerra, há uma parcela da sociedade que, ironicamente, cria fantasias surreais. As redes sociais tornaram-se um palco onde as vidas das pessoas estão sob uma perspectiva de filtros. Não raramente, estes palcos escondem a crueldade e as maldades reais inerentes à condição humana.

Neste ambiente virtual, a falsa empatia se manifesta através de compartilhamentos e emojis de solidariedade hipócrita. Por outro lado, a conexão com a realidade se perde na efemeridade das notícias que rolam alucinadamente no feed de cada um. Os algoritmos que manipulam as pessoas atingem até o povo sofredor, que se sente num falso acolhimento e pertencimento.

O ativismo digital transforma-se em uma forma de autopreservação, onde  o povo sofredor substitui sua dor pela ilusão.

ECONOMIA DE GUERRA

É assombroso notar que, enquanto o sofrimento persiste nas zonas de guerra reais e digitais, a ilusão digital da normalidade cresce. A economia que se move através de likes e compartilhamentos gera poucos beneficiários da opulência. Empatia e compaixão real transforma-se em moeda de troca simbólica, onde a sensação de contribuição é artificial.

A solidariedade para com a maioria dá lugar a likes e centavos de ilusão. Este é o paradoxo cruel que se desenha: enquanto o povo sofredor morre em guerras insanas, a sociedade virtual assiste passivamente. Desta forma, muitos confortam-se com a falsa sensação de que suas ações virtuais têm o poder de mudar o mundo.

A questão ética e moral torna-se ainda mais evidente quando se considera a disposição de financiar influenciadores digitais. Estes crápulas, promovem, sem dúvida, a ilusão de que as guerras, o sofrimento e a dor não existem. Enquanto muito dinheiro alimenta as máquinas de entretenimento digital, organizações humanitárias lutam para arrecadar fundos mínimos.

Esta desconexão entre a realidade e a narrativa digital cria um abismo perigoso que Bezerra da Silva bem retratou. A indiferença, sob o disfarce do ativismo, perpetua o ciclo de iniquidade, da manipulação e enganação.

JESUS CRISTO

Bezerra da Silva sempre recebeu questionamentos da mídia sobre seu envolvimento com bandidos e suas letras com críticas à sociedade. Num destes momentos, ao receber um questionamento sobre a guerra no Oriente Médio ele respondeu:

- Não foi lá que mataram Jesus Cristo?

Com toda a certeza, nem quem fez a pergunta e a maioria dos que ouviram ou leram a respostas entenderam a ironia. Certamente, são aqueles que praticam, a cada postagem, a destruição da verdade(2).

Desta forma, em um momento em que a humanidade deveria estar unida contra as ameaças globais as pessoas se voltam para questões menores. Em outras palavras, a dor deste povo sofredor que nos cerca vira questão menor ante uma ou mais guerras midiáticas de bilhões. Os gastos excessivos com armas de guerra e a ilusão digital da indiferença, sem dúvida, destacam a necessidade de uma reflexão coletiva.

É imperativo que a sociedade abandone a complacência virtual e reconheça a responsabilidade moral de agir diante do sofrimento humano. A história nos lembra das consequências devastadoras da inação ou da passividade em relação a todos que sofrem. Cabe a nós, inquestionavelmente, decidir se permitiremos que a ilusão digital persista ou se vamos noutra direção.

"Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*) Frase de Bezerra da Silva sobre a ironia do termo comunidade.

"A favela, que agora puseram um nome mais bonito: comunidade, porque o remorso é tanto. Eles sabem que o favelado é vítima de uma sociedade famigerada."

(1) "Entre sem bater - Bezerra da Silva - Povo Sofredor" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/02/17/entre-sem-bater-bezerra-da-silva-povo-sofredor/

(2) "Entre sem bater - Eduardo Marinho - Pobres de Espírito" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/11/06/entre-sem-bater-eduardo-marinho-pobres-de-espirito/

(3) "Entre sem bater - Bill Clinton - Destruição da Verdade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/13/entre-sem-bater-bill-clinton-a-destruicao-da-verdade/