A Farmácia
Se Franz Kafka fosse vivo nos dias de hoje, teria escrito “A Farmácia”, em que o personagem principal passaria por dificuldades burocráticas absurdas ("kafkianas") só para conseguir comprar o medicamento que precisa.
Aconteceu comigo.
Uma frase exagerada, mas um tanto verdadeira, se tornou trivial aqui em Salvador e, talvez, no resto do Brasil: “em cada esquina há igreja e farmácia”. Só nas ruas de Brotas existem incontáveis farmácias (e igrejas). E eu fui escolher logo aquela em que os funcionários são extremamente rigorosos quanto à literalidade das receitas médicas. A pirâmide invertida que me desculpe, mas eu vou começar do começo e não do fato mais importante.
Chego e encontro o segurança usando uma máscara para prevenir COVID-19.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
Todos os funcionários usavam esse tipo de máscara. Tudo bem. Continuam cautelosos. Vou para a fila. Um rapaz e sua namorada estão na minha frente. Há três caixas. Dois estão atendendo clientes e há um caixa vago. Logo chega mais um funcionário e assume esse caixa. O casal vai ser atendido.
De repente, um homem, que já estava sendo atendido, dá uma tapa forte no balcão. Todo mundo olha para ele.
- Você não pode estar falando sério…. - ele diz. As mãos tremiam. O cara estava furioso.
- Eu não posso. Vai “dar B.O” pra mim. - respondeu o atendente.
“Dar B.O” significa se meter em problemas.
O segurança se aproxima e tenta convencer o homem furioso. Enquanto isso, tirei o celular do bolso e tentei me distrair. Não gosto de conflitos que são barulhentos e que chamam atenção. Fiquei distraído vendo vídeos de gatos e não ouvi o que o homem nervoso estava dizendo ao sair acompanhado pelo segurança.
Guardei o celular. Vi o casal conversando com a atendente. O rapaz dizia:
- Por causa de uma vírgula!
- Por causa de uma vírgula? - perguntei.
A atendente estava usando uma lupa para ler a receita que a namorada do rapaz tinha dado a ela. Um rigoroso escrutínio.
- Sim, eles rejeitaram a receita daquele homem porque faltou uma vírgula.
- Isso não pode ser sério. - eu disse.
Foi quando me chamaram.
- Boa tarde.
- Boa tarde. Em que posso ajudar?
- Ritalina.
Peguei minha receita amarela e dei. O atendente deu a primeira olhada.
- Já volto. - ele disse. Foi a uma sala. Voltou com uma lupa.
Enquanto ele examinava a receita, falei:
- Gostei da cautela de vocês.
- Que cautela? - ele perguntou.
- Mesmo com o fim da pandemia, vocês ainda usam máscara.
- Não é nada disso. Usamos porque a Anvisa ainda está analisando o nosso requerimento.
- Requerimento? A Anvisa precisa responder um requerimento para vocês pararem de usar máscara?
- Sim. Se tirarmos antes, pode dar problema.
Foi então que veio a má notícia.
- Eita, rapaz. Está faltando o “m” em “mg”. - disse o atendente.
- Eu preciso muito do medicamento. Vocês não podem deixar passar essa?
- Não. Você só poderia comprar ritalina de 10g. No entanto, não vendemos. Aliás, nem existe. Aqui só temos de 10mg.
- Eu vou ter que voltar à clínica só para pedir à médica que escreva um “m” na receita?
- Sim… - respondeu o atendente.
- Pega uma caneta e desenha você mesmo. O que custa?
- Não temos caneta azul. Mas já fizemos um requerimento.
- Isso é um absurdo!
- Entendo sua frustração. Porém, eu apenas sigo a lei.
O segurança se aproximou de mim. A princípio, não entendi. Eu não estava procurando nenhuma confusão. Então, notei que ele queria me ajudar, como ajudou o outro cliente.
- Se eu fosse você, cairia fora logo, antes que tenha que fazer um requerimento para ir embora da farmácia…