O Paraíso das aves

     Nascera praticamente cego e com graves limitações motoras. Era fruto de uma ninhada problemática. As duas irmãs também apresentaram severo grau de cegueira, embora não tivessem problemas físicos semelhantes ao irmão.

     Enquanto estiveram sob a companhia da mãe, uma galinha zelosa e experiente na criação dos pintinhos, não houve maiores dificuldades e os filhotes iam-se adaptando às limitações daquela vida. Mas a mãe deles foi cruelmente trucidada, dentro do galinheiro, por um predador que não consegui identificar qual era. 

     Os pintinhos órfãos foram dando um jeito de viverem por si mesmos e, contrariando todos os prognósticos, chegaram à fase adulta. Aos trancos e barrancos, mas chegaram.

     As franguinhas começaram a botar seus minúsculos ovos e o galinho garnisé ensaiou os primeiros cantos e já demonstrava interesse em namorar as franguinhas.

     Mas com a cegueira e a falta de coordenação motora, não conseguiu muita coisa e logo as galinhas e ele próprio perderam o interesse naquela nova descoberta.

     O garnisé revelou-se um ótimo cantador e sempre me embalava nas madrugadas. Passava o dia entre seu canto afinado e o desafio de encontrar a vasilha de água e a de comida.

        Aprenderam os três a se guiarem uns pelos outros. Quando eu me aproximava com água e comida sempre verbalizava a minha ação, convidando-os a comerem. E eles rapidamente aprenderam a seguir esses comandos.

     Mas o tempo foi passando, um, dois, três anos e os problemas foram se agravando. Uma das franguinhas foi levada juntamente com outras aves sadias para a casa de uma amiga. Ficou o casal. A franguinha quase cega e com problemas de locomoção devido à falta de uso dos pés para ciscar. Alguns dedos chegaram a cair por gangrena. O galinho, teve agravado o seu problema de locomoção, com o curvamento cada dia mais acentuado das pernas, recobertas por espessa crosta.

     Certa feita, foi seriamente ferido por um gambá, já que dormia no piso do galinheiro, impossibilitado de subir para os poleiros. Foi socorrido a tempo e sobreviveu sem maiores consequências.

Mas, agora, há cerca de quinze dias, sofreu novo ataque e desta vez não pôde se recuperar dos ferimentos. Depois desse evento, não comeu mais, não conseguia beber água sozinho e foi definhando, até que na manhã da segunda-feira de carnaval, amanheceu estirado no gramado do quintal.

Providenciei o recolhimento do pequeno corpo para dar-lhe um fim digno, e um detalhe me chamou muito a atenção. O olhar do galinho. A despeito de ter sido cego desde o nascimento, morreu de olhos bem abertos.

     E aquele olhar por demais expressivo, me pareceu o olhar de puro encantamento, como de alguém que, após a passagem pelas atribulações que a vida lhe ofereceu, via, pela primeira vez, o paraíso celeste para onde fora transportado.

     E, imediatamente, me lembrei da genialidade de Graciliano Ramos ao descrever o Paraíso da cachorra Baleia, que representava o oposto de tudo que a pobre cadelinha vivera ao lado da família de Fabiano. Um paraíso em que ela, mesmo depois de ser sacrificada pelo companheiro de tantos anos, projetava para toda a família uma vida de fartura.

     Por uns instantes,  imaginei como seria o paraíso daquela avezinha que viera ao mundo para cumprir tão dura missão. E fiquei pensando na minha própria vida e de como tenho cumprido o que me foi determinado, imaginando se, na minha passagem para o outro plano, teria assim como o galinho cego, todo o deslumbramento ao ver, à minha frente, o lugar em que viveria essa outra dimensão.

     Os bichos sempre nos dando as melhores lições e proporcionando-nos profundas reflexões!

 

Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 15/02/2024
Reeditado em 08/03/2024
Código do texto: T7999368
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