Um navio encalhou no Mediterrâneo
Um navio negreiro encalhou no Mediterrâneo. É um navio grande e está lotado.
Para quem não sabe como eram os navios negreiros, eu explico.
O compartimento da mercadoria era o porão; juntos lado a lado os corpos pretos eram acondicionados nus; homens, mulheres e crianças.
A viagem era longa e a comida escassa. A água também era racionada.
Ali mesmo, onde estavam, comiam a pouca ração e no mesmo local faziam suas necessidades fisiológicas. A urina e as fezes dos que estavam acima, escorria para os que estavam abaixo.
Esta era uma das razões que tornavam o ambiente insalubre; junte-se a isso a escuridão e o ar “viciado” com tanta gente respirando numa área confinada, além dos gases formados pela urina e fezes apodrecidas.
Nessas condições não é de se admirar que 40% da “carga” perecesse na travessia. O Atlântico Sul foi o cemitério de milhares ao longo de mais de 300 anos de tráfico intenso.
Os mercadores desta viagem macabra eram cristãos e cristãos-novos, estes se esforçando para esconder sua verdadeira fé, mas ambos ávidos por ganhos extraordinários no melhor negócio do momento, custasse o que custasse aos pobres acorrentados, que se chegassem ao destino, teriam vida útil menor que um decênio.
Logo no início do “negócio” a realeza britânica estreou seu barco de horrores cujo nome era controverso: “Jesus de Lubeck”. Apesar dos corpos martirizados, pelos quais não demonstrava compaixão, foi fiel à sua fé, talvez até tenha rezado ao ídolo homenageado para amenizar perdas de mercadorias.
Agora temos um barco encalhado a oeste, no mediterrâneo. As condições são as mesmas dos navios negreiros do século XVI. Pouca comida, pouca água, nenhum lugar privado para repousar ou para fazer as necessidades; nenhum socorro a vista, a morte espreita a cada segundo. Um dominador violento reivindica suas terras e delas os expulsa, antes que contestem. As correntes que os aprisionam não são de ferros circulares, porém são metálicas, pontiagudas, capazes de furar um crâneo à distância; os algozes os comandam com ordens indiscutíveis e controversas: “corram para o norte”, “fujam para o sul”; tudo isso depois das escavadeiras e do fogo destruírem suas casas e seus olivais; nada sobrou, apenas o dia e a noite.
A cada nova explosão, uma corrida aos escombros para recolher cadáveres e, por milagre, tentar salvar moribundos. Os hospitais estão destruídos.
Coincidentemente são os mesmos mercadores do século XVI. Sem tribunal do santo ofício, um dos grupos não precisa mais esconder ou disfarçar sua fé. Um novo “negócio” está na moda e ganhar dinheiro é necessidade urgentíssima. A jazida de ouro negro jaz no fundo do oceano, logo onde residem os indesejáveis, e não há nada nem ninguém que os impedirá de alcançar seu intento, pouco importa quantos cadáveres serão ‘descartados’.