A entrega - uma crônica sobre a paranoia

Quarta-feira de Cinzas. Alguém grita meu nome do lado de fora do beco onde fica minha casa. E grita meu nome bem alto. Até me assustei um pouco. Em alguma casa na escadaria onde fica o beco, uma pessoa que me conhece diz à pessoa que me chama:

- Ele mora nesse beco aí.

A pessoa que me procura revela-se como um suposto entregador, que teria uma suposta encomenda para mim. Devo descer e atendê-lo sem maiores preocupações? A pergunta pode parecer estranha para o raro leitor, mas uma postura cautelosa assim não é incomum por aqui. Eu moro em um dos bairros mais violentos de Salvador. E há pelo menos dois conhecidos casos de homicídios em que o assassino se passou por entregador de encomenda. No entanto, tratam-se de ocorridos relacionados ao tráfico de drogas. Eram bandidos querendo tomar o território de outros. Não há motivo para alguém querer me apagar. Ou será que há? Talvez algum torcedor do Atlético Mineiro cansado de me assistir gozando do time dele em redes sociais. Talvez algum torcedor do Botafogo, porque eu disse que a Copa Conmebol era a “terceira divisão da América”. Algum fanboy pode querer me matar só porque eu falei mal da série televisiva favorita dele. Ou, quem sabe, alguma paquita de político me colocou na mira, pois eu certamente zombei de seu líder. É, parece que a fila é grande!

E tem mais outro detalhe: uma entrega em plena Quarta-feira de Cinzas?

Há uma piada com um fundo de verdade entre bandidos e pessoas de bem aqui na área: entrega na Quarta de Cinzas? Não atenda, pois é cilada. Pode ser um matador enviado ou a polícia querendo flagrar você usando tv a cabo pirata.

Como se pode notar, a paranoia não é nada insólita por aqui. Thomas Pynchon, um dos meus autores favoritos, abordou sobre a paranoia em seus livros. Em “O Leilão do Lote 49” - publicado em 1966, cujo enredo leva a uma (suposta?) conspiração envolvendo empresas de distribuição postal -, a protagonista vive acompanhada pela paranoia. Então, me lembro que eu posso estar envolvido em minha própria conspiração postal. Quando criei a lista acima de pessoas que poderiam desejar o meu fim, esqueci de mencionar os Correios. Eu fiz várias reclamações contra essa estatal em um site na web. Vai ver ficaram incomodados e estava na hora de acertar as contas. O entregador não estava com o tradicional uniforme amarelo e azul. Todavia, o assassino não iria dar esse mole. Pelo que sei, a máfia, as gangues do tráfico de drogas ou qualquer outra organização criminosa não mandam seus sicários vestirem o uniforme antes de irem matar alguém.

De qualquer forma, desço para atender. Apareço da janela. Qualquer movimento suspeito ou brusco com as mãos e me jogo no chão. Ele coloca as mãos no bolso. É agora?!

Tirou uma caneta.

- Você é o próprio destinatário?

- Sou.

- Diga seu RG.

Dei minha numeração do RG. Ele anota num papel. Pergunto:

- É só isso?

- Sim. - ele disse.

- Obrigado.

- Por nada.

- Trabalhando numa Quarta de Cinzas?

- O que é que tem?

- Não é comum.

- Você acha que sou algum carteiro? - ele disse antes de ir.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 14/02/2024
Reeditado em 14/02/2024
Código do texto: T7999148
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