Banheiros de carnaval, a quase rinha de Ubers, e toca Raul

Decido que vai ser diferente, que não ia deixar o carnaval viver e morrer, comigo só observando

Há meses ouvi uma frase que fraturou as coisas. O cara estava lá, falando, vídeo aula sobre psicanálise. Eu sei, calma, a parte chata já acaba mas em certa altura, ele fala sobre a produção de subjetividade, a maneira como somos no mundo e como o mundo é pra gente, como lemos as coisas. Pra ele, a fuga está numa "maneira singularizante de produzir a si mesmo".

Pois, ser feliz, eu acho, é sobre não esperar por ninguém. É produzir a si mesmo.

Estou num banheiro químico. O azul parece me engolir pra logo em seguida devolver. O barulho do palco me acorda e lembro que tenho que voltar. Tudo isso não dura mais que cinco segundos. Até ali, já havia bebido umas quatro cervejas, água, espetinho de língua e uma caipirinha de cajá. Cajá. (Não sei se foi uma boa escolha de sabor, mas deixa pra lá...) E cheguei a algumas conclusões bem legais: Se divertir é caro

Saio, recobro o fôlego, banheiro químico é nota dois. Vou até a frente do palco. Alguns rappers locais cantam, é tudo festa, minha cabeça já gira um pouco. Caipirinha de cajá tava forte. Muitas das letras fazem menção aos orixás, é uma festa preta, popular, fico feliz.

Decido ir dali pra outro canto da cidade, outro palco, ver o que tava rolando. Peço um Uber, a noite se estica, longa. Me pergunto se seria uma boa ideia sair dali, mas não dá tempo de chegar a uma conclusão, uber aparece, meio puto, puto porque se formou uma fila sem fim de carros e ele buzina. Buzina de novo, precisa pegar o passageiro (eu).

O fiscal de trânsito está parado em sua motinha, inerte, sem intervir. Tem um gigante bigode grisalho e usa um colete fluorescente que me fere o olhar.

O uber desce do carro já gritando, fúria.

- Tomar no cu esses caras, vem irmão, deixa que eu te ajudo.

Não entendi muito bem de primeira, fui logo me desculpando. E ele continua

- Atrapalhando o trânsito aí...esses caras merecem é um soco na cara.

"Soco na cara?" Eu ainda assustadíssimo, mas agradeço a brutalidade gentil, não sei se rinha de Ubers era o jeito que eu pensei a minha noite "Não, relaxa, foi com você não, é esses caras aí, esses [xingamentos, xingamentos]" Ele completa e logo me põe no carro, desmonta a cadeira numa agilidade incomum e segue.

O fiscal da STTU ainda inabalável, dá um tchau com seu bigode, e eu vejo o ponto verde brilhante se distanciar, com a certeza de que poderia ter acontecido o maior UFC entres os motoristas de aplicativo, que aquele bigode continuaria ali, sereno, intocável.

O carro toca Zezo, que pra quem não conhece, é uma figura lendária no cenário local de música brega. Me pergunto se o carro não é velho demais pra rodar Uber, mas isso é detalhe. "Isso aí irmão, tem curtir mesmo carnaval." Pago, ele põe o carro estrategicamente numa rampa, me ajuda a descer E antes de ir embora ainda me dá um conselho. "Aí irmão, cuidado aí, aqui, se vacilar, a galera leva as coisas"

Fico meio em choque, mas agradeço a sabedoria, dou cinco estrelas.

Estou em outro banheiro, dessa vez um banheiro de bar, um banheiro feminino. Outras conclusões que tive é que,

1. Cerveja produz muito xixi.

2. Banheiros femininos são infinitamente mais limpos. Até a fila é mais organizada.

Uma querida me ajuda vigiando a porta, a outra segura meu celular e minha cerveja, e uma terceira segura a cadeira pra que eu suba de volta. Banheiros femininos são a democracia em sua forma mais plena.

Saio dali e vou até a frente do palco, as bandas se revezam tocando versões de Raul Seixas, eu canto quase todas , fico amigo de umas senhoras simpáticas, dançamos na frente do palco, falo no microfone. O eu eu falei? Não pergunte. Mas deve ter sido algo do tipo:

"Carnaval, vamos curtir, vamos beber, toca Raul, porra."

Pois é, é difícil articular um raciocínio depois de uma quantidade incrível de cerveja, mas funciona. A plateia vibra e aplaude.

Uma coisa interessante sobre fãs de Raul Seixas é que essa é uma frases que eles falam muito "Toca Raul". Tô falando sério. Até quando só tá tocando Raul, que era o caso, eles falam entre uma música e outra, o mantra, "Toca Raul".

Outra coisa interessante é que eles se dividem no espectro: Rockeiros doidões de meia idade, Pais de família, e jovens com alma de Rockeiros doidões de meia idade. São fãs tão ou mais engajados quanto os da Taylor Swift.

O suor me derrete, uma criança cruza o meu caminho, ela está com uma espécie de corda na cintura, olho pro fim da corda e o pai a segura em segurança, zumbizagueando pra lá e pra cá.

Pego mais uma cerveja e vou até a mesa respirar, já perdi as contas de quantas cervejas são. Fico "amigo" de uns três caras, conversamos, e eles me chamam pra continuar o rolê dali pra outro lugar. Um deles, o que fala mais, é meio o arquétipo macho escroto, camisa estampa florida, olha ao redor como sonar de morcego, e faz comentários sobre querer pegar alguém hoje a noite. Dou uma enrolada, vou embora, pego mais uma cerveja e vou de novo pra frente do palco.

Conheço uma mulher, animadíssima, trocamos o Instagram, tiramos foto com a banda, vou de novo ao banheiro, que, assim como na primeira vez, continua sem sinal de vômito, ou qualquer que seja o fluido corporal. Tomo uma última cerveja. Olho no celular e da última vez que olhei já se passaram duas horas, assim, voando, dobra no tempo.

Tenho que ir pra casa, tenho que ir. Peço a conta, a música se afasta, percebo que é assim, todo carnaval tem seu fim, mas se vive um dia por vez.