Além do que a memória vê

No emaranhado das linhas imaginárias desse futuro/passado, onde constantemente vivo me perdendo e me buscando, as vezes nem sei se é dia, as vezes nem mesmo sei quem sou, as vezes nem lembro da Rosa que regava sempre ao amanhecer, das conversas loucas e do jeito complicado de certos momentos, das minhas idas ao mercado onde sempre encontrava a minha amiga Lourdes que vivia há reclamar de dores nas costas, dizia sempre assim

-olhe, margarida essas dores vão me enlouquecer

E eu sempre respondia

- mas você já é louca não é?

E Nós caímos na risada, como todos os dias as 17hrs em ponto eu recebia a visita de minha neta, que sempre me trazia novidades de sua vida e me fazia se sentir uma heroína da terceira idade, das músicas que minha neta cantava pra mim e me arrastava para um passado distante onde eu podia ver o início de uma longa jornada, eu podia passar horas apenas nesses momentos, sabe, eu nunca quis ser tanto mas eu fui, eu fui muito

andei na direção do amor e me deparei com uma rua, que se tornou o ponto de partida para uma história de amor, encontrei aquele que me fez ter o hoje e a felicidade ao escutar "carinhoso" na voz de minha neta, essa que herdou todo o talento de seu avô, e que sempre quando canta me fez ficar mais perto dele, ele, já não está presente, não em vida, mas está em tudo que ficou

Mas essa sou eu, eu poderia começar me apresentando, mas é que sempre pensei que as coisas boas pudessem chamar mais atenção, e está, sou eu, sou eu novamente, margarida, dona de uma família enorme, de um quadro cheio de cores que representam tudo isso que já disse e que passaria horas dizendo a mesma coisa, se é que eu já não fiz isso.

Mas a cada dia perco uma partícula do quadro que pintei ao logo da vida, mesmo que eu repita, a cada nova abordagem uma cor vai sumindo, e o que antes era grande e cheio de cores, pois, sempre gostei de cores vivas, cores que mostram o sentimento mais puro de dentro de mim, a cada vez que entro onde está exposto o quadro, vejo que cores andam a sumir, e eu, bem, não posso segurá-las, todas essas pessoas que fazem desse presente um mundo particular e ao mesmo tempo coletivo, vai ficando cinza, o silêncio paira sobre a minha cabeça e o que vejo é só um quadro em branco.

Há uma coisa a dizer

E disso pode ter certeza, é meio complicado

Digo, isto, pois entre o passado e o presente eu nem sei mais a diferença

Não faço ideia das coisas, das conexões que em mim são gravadas, mas sei que um dia fui mais do que palavras que me contam

Dizem que fui alguém importante mas quando a lucidez bate em minha porta e diz "hoje posso ficar" eu paro e penso " por que fui ? Isso remete ao passado, eu ainda sou não é?, eu ainda estou na exposição da vida? Ou sou apenas um quadro ultrapassado?, um quadro que todos os dias perde a cor

Eu já me apresentei?, acho que perdi mais uma cor

Mas há sempre coisas que não podemos explicar, o tempo as vezes corre mais do que imaginamos, e eu, que sou protagonista de minha própria história acabo sucumbindo ao mundo dos esquecidos e ficando fora da minha própria narrativa.