Meu carnaval, e a estranheza autoral de Yorgos Lanthimos.

O mundo lá fora brilha e se espalha. É carnaval. É carnaval, mas eu pareço vibrar numa frequência outra.

Não vou bem.

Queria a agitação íntima que falou Clarice, queria entender e ver mais uma vez aquilo e saber de tudo como se " enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu"

"Sou Bella Baxter. E há um mundo pra explorar e circum navegar" - Bella, "Pobres Criaturas"

Não foi dessa vez.

Há uma coisa engraçada sobre tentar engolir pedaços grandes de comida: Ou você desiste, ou sufoca vez após a outra, até que, num fatídico reflexo, sua glote se fecha e o ar não passa. Nada passa. É o tipo de decisão que temos que tomar diariamente:

"Continuar ou interromper?"

"Quem sabe, da próxima vez se eu tentar mais, tentar melhor",

"Sou eu que não mastigo o suficiente, ou a carne da vida que é dura demais?"

Assisti ao majestoso "A favorita". É o terceiro que vejo do Yorgos Lanthimos. Aliás, não sei se tem coisa mais deprimente e igualmente recompensadora que ver filme em plena festa.

É interessante assistir vários filmes de um mesmo autor e perceber a gramática dele. Toda câmera é, por natureza, um olho. Todo olho é governado por alguém. Todo alguém vai representar e assimilar de um jeito.

O sexo, os temas, ritmo, os diálogos, tudo é diferente, de autor pra autor.

Os dois primeiros que citei, são especialmente interessantes e recorrentes em Lanthimos. Em "O lagosta", o amor, a necessidade dele, é colocado no extremo: ou casa, ou vira bicho. A "incompatibilidade de gênios" daquele samba de João Bosco, é colocada a prova, a todo momento.

Em "A Favorita", as mulheres são a alma, o espírito e a coluna vertebral. Ao homem é legado o papel de acessório, os machos são uma mera antesala da narrativa, primitivos.

Na cena da lua de mel de Abigail (e seu agora esposo), ela fala pelos cotovelos, temerosa, faz maquinações. Enquanto ele só quer saber daquilo: transar. Consumar o matrimônio. Ela se senta ao seu lado, o satisfaz, mas ainda com a mente em outro lugar, pensando e falando e analisando.

Em "Pobres criaturas" esse caminho é desenhado inversamente proporcional. Bella, vai o filme inteiro numa ascendente, cada vez mais absorvendo e querendo o mundo. Enquanto o cara, o babacão, chora e faz birra que nem criança quando vê conflito.

"Algumas feridas nunca se fecham. Você aprende a portá-las e, as vezes, sente as enchendo de sangue." - Rainha da Inglaterra, "A favorita"

Talvez seja dessa forma. Não é que a vida está dura demais, é que eu, meus dentes, já não tem mais força de devorar. O sangue vai tomando o crânio e é preciso abrir, liberar a pressão intracraniana. Sabedoria e serenidade. Do contrário, tudo explode. Explode como confete colorido.

"A dignidade de um homem é a única coisa que o impede de enlouquecer." - Godolphin, "A favorita"

Não, não é pra tanto. Enlouquecer é extremo, mas felicidade, serenidade, são das coisas do mundo que não se fingem.

Você pode até fingir estar bem, mas uma hora o sorriso congela na face, os músculos doem, e quando não há mais nada pra se fazer, você chora, os dentes e a expressão petrificada são a traição da máscara.

"Um dia, enquanto jogava golfe, ele pensou que é mais difícil fingir que você tem sentimentos quando não tem, do que fingir que não tem, quando tem" - A mulher que enxerga mal, "O lagosta"

Mentira. É comum, eu acho, quase que de primeira ordem, quando falamos em sobrevivência. Pra mim, uma criança só aprende a pensar quando aprende a mentir. Sabendo, claro, que terreno feito embaixo de mentira desaba, e desaba com pressa. A mentira, quando a longo prazo, adoece. Vamos nos vestindo de cegas certezas, defeituosas, que devagar aparecem mansas e calmas. Um bolo inglês lindo por fora, com um glacê bonitinho, mas com gosto amargo.

Em a Favorita, esse glacê, a mentira, as máscaras estão lá. Temos os cenários e os papeis postos. Como é natural nessas histórias de monarcas e luta pelo poder, há todo um verniz midiático, aparências.

A exemplo do carnaval, Castor de Andrade era uma figura paradoxal: Rei do carnaval da mocidade, rei do Bangu, o time de futebol, e em paralelo, um bicheiro sanguinário e irredutível. (Tenho que ver a nova do Globoplay, "Vale o escrito")

Falei dos cenários de "A favorita", esses inclusive, são mostrados em grandeza de planos abertos, suntuosos, cínicos, e decadentes. Muito ouro e rococó.

Tudo isso é moldura, um "Tablaeu vivant", para personagens cheios de maquiagem, perucas e vestidos. Aliás, o filme tem muito cara de peça teatral. (esses vestidos devem pesar e apertar muitoo)

As vezes, engasgar dia após dia, é mais cômodo que parar, desistir. Ciclos são difíceis de quebrar. A rainha, por exemplo, várias vezes se vê dependente do relacionamento com sua assistente/ conselheira/amante.

Assim como na tela, as coisas, os temas, vão tendo contornos mais ou menos parecidos, se repetem, de acordo com o diretor. No nosso caso, quem governa as nossas imagens, o rumos da vida, somos nós mesmos. Você é o diretor da propria cena. Assim, as dores, os problemas, se acomodam em lógicas irracionais, prévias.

Tenho, eu acho, que afiar os dentes caninos.

Morder a vida com mais força.

Quem sabe o carnaval brilhe de novo.