A Quarta Feira de Cinzas e a Volta à Ordem Social
No catolicismo, a quarta feira de cinzas é um momento de purificação, o momento que marca o fim do carnaval e se volta a mentalidade para Cristo. Na prática, ela marca a volta a normalidade da vida urbana e o fim das festividades por parte dos foliões.
Nesse momento se dá adeus aos palcos iluminados pela esperança, onde as fantasias caem para revelar outras máscaras, numa dança que inverte, pelo menos por alguns dias, a ordem e os papéis sociais estabelecidos em uma sociedade rigidamente orquestrada pelo racismo e miséria. Tristeza não tem fim, felicidade sim - cantava Tom Jobim em alusão a essa intensa data.
A festa carnavalesca é fuga da realidade e encontro com a alegria de forma coletiva, de troca de afetos entre desconhecidos em uma sociabilidade marcada pelo egoísmo. Por um breve período, as ruas se tornam o verdadeiro palco da inversão da ordem estabelecida, onde o camelô veste a fantasia de rei e o mega empresário se deleita em parecer uma pessoa comum.
Mas quando a quarta-feira de cinzas chega, cada pessoa retorna à sua posição original na estrutura social, como se nada tivesse mudado. A doce ilusão do carnaval vai sendo deixada de lado e todos retomam seus postos na rigida pirâmide social, a qual claramente define quem doa todo seu suor no trabalho e os poucos que exploram e endossam lucros em cima desse esforço. A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho pra fazer a fantasia - escreveu o grande compositor da bossa nova.
A hierarquia social foi suspensa em nome da festa. Mas agora, essa suspensão se mostra temporária e superficial, revelando a fragilidade de uma sociedade que precisa se fantasiar de igualitária uma vez ao ano para suportar suas desigualdades nos outros mais de trezentos dias. As fantasias se desbotam no esquecimento.
No espetáculo vivido, a inversão de papéis é permitida, celebrada até, mas sob a vigília inabalável do sistema, da ideologia capitalista que garante o retorno à ordem, a naturalização da pobreza, a aceitação da humilhação dos pedintes, o bater de palmas para os camarotes da vida real dos ricos assim que os tamborins se calam. O carnaval é uma válvula de escape para o povo brasileiro, mas delineada pela e para a manutenção do status quo.
Por mais que o samba enredo cante histórias de resistência, como nesse ano foi lembrado a vida de João Cândido, a estrutura que o sustenta é a mesma que perpetua as desigualdades contra as quais se canta. A grande festa serve como lembrete de que, no grande desfile da vida brasileira, as alas e os carros alegóricos estão bem delimitados, não pelo talento ou esforço, mas pela fortuna, origem de classe e cor de pele.
E quando ela acaba, a máscara da igualdade é guardada, só para ser usada no ano seguinte, garantindo que a ordem (des)igualitária permaneça intacta, dançando ao som do mesmo triste samba de sempre. O país que é um mundo em forma de moinho que tritura todos os sonhos de igualdade social, reduz a pó a vontade de emancipação dos foliões.
13.02.2024