Entre Sem Bater - Tirania Odiosa
Miguel de Unamuno disse:
"... não há tirania no mundo mais odiosa do que a das ideias ..."(1)
Miguel de Unamuno viveu o auge de uma guerra mundial e de uma guerra civil. Sua origem (País Basco) forjou todo o seu pensamento que, como na frase sobre a tirania odiosa que viveu, sobrevive e cresce. Infelizmente, as palavras de Unamuno explodiram no nazismo, pouco depois da sua morte, falta de aviso é que não foi.
TIRANIA ODIOSA
Em primeiro lugar, a história da humanidade registra uma tirania odiosa através da supressão de opiniões divergentes e da imposição de uma única narrativa(2). Alguns adoradores de frases feitas gostam de algo do tipo "... quem escreve a história são os vencedores ...". Anteriormente, os vencedores registravam nos livros e chegavam até a queimá-los, para manter as versões e esconder fatos(*).
Entretanto, as redes sociais, as novas tecnologias e o armazenamento de dados e informações mudaram o mundo para sempre.
Desde que existem tiranos, déspotas e ditadores em nível político, é notório que a tirania contra opiniões se manifesta crescentemente. Contudo, era de se esperar que nas interações cotidianas e, mais recentemente, nas redes sociais esta situação diminuísse. Ledo engano e erro crasso acreditar que os usuários de Internet e redes sociais soubessem do poder das tecnologias.
TIRANIA DIGITAL
Os tiranos políticos historicamente utilizaram a censura e a perseguição para silenciar vozes dissidentes. Desse modo, desde que existe registro de opressão, estes déspotas esmagam qualquer oposição que ameace seus regimes autoritários. Essa tirania odiosa muitas vezes levou a um ambiente em que o medo prevalecia sobre qualquer opção de livre pensar. Certamente, questionar dogmas e crenças sempre resultou em represálias brutais.
Sendo assim, o controle da informação, a manipulação da verdade e a repressão de opiniões contrárias sempre foram armas poderosas. E, aparentemente, nas mãos desses líderes autoritários, continuam sendo armas. Por outro lado, as tecnologias disponíveis não foram suficientes para liberar a mente das pessoas para o exercício do pensamento.
Atualmente, essa forma de tirania é menos óbvia, mas igualmente prejudicial. As "bolhas de informação" e grupos se transformam em ecossistemas fechados, onde as opiniões convergentes predominam. Desse modo, criam-se barreiras intransponíveis para as ideias divergentes. A aversão a novas ideias ou perspectivas contrárias aos dogmas cria um ambiente virtual onde a tirania contra opiniões floresce. Por isso, a ideofobia cresceu assustadoramente e Miguel de Unamuno identificou este comportamento abusivo quase cem anos atrás.
IDEOFOBIA
A ideofobia é um termo que se refere à aversão ou ao medo de ideias e opiniões diferentes das próprias. Observa-se este fenômeno, não com este nome, frequentemente, em nossa sociedade, especialmente nas redes sociais. Com toda a certeza, essas redes deveriam ser um espaço para as pessoas expressarem suas opiniões e ideias livremente. No entanto, criou-se um ambiente onde a ideofobia e a teoria do cancelamento mais prosperaram. As pessoas querem se agrupar em comunidades online que compartilham as mesmas opiniões e ideias, com suas “câmaras de eco”. Esses espaços reforçam as crenças e dogmas dos déspotas e pregadores, desencorajando a exposição de ideias diferentes.
Como se não bastasse, a ideofobia tem vários fatores a alimentá-la. Primeiro, a natureza do anonimato permite que as pessoas expressem suas opiniões sem medo de repercussões pessoais. Isso pode levar a ataques mais duros contra ideias contrárias. Segundo, os algoritmos das plataformas tendem a privilegiar conteúdos em alinhamento com crenças existentes. Assim sendo, reforça-se ainda mais a aversão a ideias contrárias, mesmo com a pretensão da liberdade de opinião.
SEM CONTROLE
A ideofobia provoca várias consequências negativas que tornam seu crescimento sem controle, e a tirania cada vez mais odiosa. Uma das consequências mais perniciosas é a falsa polarização. Nos espaços onde as diferenças de opinião se tornam extremas, deveria haver o diálogo. Contudo, como a ideofobia avançou e a opinião é somente de um lado, inexiste a polarização de opiniões, de fato.
Desta forma, esses comportamentos são particularmente prejudiciais a qualquer tentativa de uma democracia. Por isso, onde o diálogo e o compromisso ético são essenciais para o funcionamento do sistema político, existe somente a tirania.
Além disso, a ideofobia limita o crescimento pessoal e intelectual pelo exercício da influência dos tiranos digitais. A exposição a diferentes ideias e pontos de vista seria crucial para expandir nosso entendimento e perspectiva do mundo. Contudo, os influenciadores fazem de tudo para que as pessoas somente compartilhem suas ideias. Ao evitar ideias contrárias, qualquer comentário ou debate, perde-se a oportunidade das pessoas aprenderem e crescerem.
Combater a ideofobia requer esforço consciente e é uma tarefa árdua, que conta com pouca compreensão das pessoas. Por exemplo, quando publicamos um simples texto de esclarecimento ou educativo, as pessoas já têm opinião sobre o tema. A princípio, segundo a maioria dos leitores, basta ver o título e buscar um "Google" para saber de tudo.
Precisamos, enfim, ouvir e considerar opiniões diferentes das nossas, mas esta ideia não agrada a nenhum tirano ou déspota do mundo moderno.
DESTRUIÇÃO DE IDEIAS E VERDADES
A proliferação de bolhas e grupos sectários nas redes sociais configura um desafio crescente no mundo moderno. A destruição da verdade(3) ou das ideias, desde o nascedouro, ameaçam qualquer construção de avanços para a coletividade. A seguir, apresentamos exemplos dos mecanismos pelos quais a tirania odiosa se manifesta cotidianamente:
1. Polarização e radicalização
As bolhas e grupos sectários amplificam vieses existentes, criando ambientes homogêneos que amplificam crenças e opiniões.
Algoritmos de redes sociais apresentam aos usuários conteúdos que confirmam seus preconceitos e limitam perspectivas divergentes.
A ausência de visões diferentes impede o debate construtivo e a análise crítica de ideias, levando à radicalização da posição única.
2. Desinformação e proliferação de "fake news"
A rápida difusão de informações nas redes sociais, sem checagem ou de fontes não-confiáveis, aumenta a desinformação.
A desinformação intencional, com fins políticos ou ideológicos, manipula a opinião pública e promove o falso debate.
A ausência de filtros críticos e a crença cega em conteúdos sensacionalistas de vieses pré-existentes contribuem para o aumento das fake news.
3. Ataques à ciência e ao conhecimento especializado
A ascensão de grupos negacionistas, que questionam a ciência e promovem teorias conspiratórias, encontra terreno fértil nas redes sociais.
A desconfiança em especialistas e instituições tradicionais, com adição da desinformação e do populismo, mina a autoridade do conhecimento científico. Por exemplo, o combate a problemas como a pandemia de COVID-19 e as mudanças climáticas estão mais difíceis a cada dia.
O ataque à ciência e ao conhecimento de especialistas avança e representa uma ameaça ao progresso social e ao desenvolvimento humano.
4. Extinção da civilidade e do diálogo construtivo
A polarização e a radicalização nas redes sociais geram um ambiente hostil ao diálogo construtivo e à troca de ideias respeitosas.
A proliferação de ofensas, ataques pessoais e linguagem hostil torna o debate improdutivo e impede o avanço de ideias e soluções.
A perda da civilidade e do respeito mútuo contribui para a fragmentação social e a erosão da democracia.
5. Enfraquecimento da democracia e das instituições
A desinformação, a radicalização e a falta de diálogo enfraquecem a confiança nas instituições democráticas e nos processos eleitorais.
A manipulação da opinião pública por meio de "bots" e campanhas de desinformação ameaça a integridade de canais informativos.
O ataque à liberdade de imprensa e o cerceamento do debate público levam à censura e até mesmo à autocensura.
Soluções sob ataque
Analogamente aos problemas que Miguel de Unamuno enfrentou, que coincidem com outros pensadores modernos, as soluções estão sob ataque. Por exemplo, se para combater fake news faz-se uma pesquisa de verificação de fatos, sua divulgação não encontra resposta nos canais dos tiranos. Em outras palavras, os próceres da ideofobia arrumam outra forma de combater tudo que não querem e os desagrada.
Combater a destruição de ideias e de verdades nas redes sociais exige medidas diferentes e que evoluam a cada dia. A relação é quase infinita, mas podemos apontar algumas básicas para a maioria das situações:
Educação para a mídia e o consumo crítico de informação: desenvolver o senso crítico e o discernimento entre fatos e opiniões, fontes confiáveis e desinformação.
Combate à desinformação e às "fake news": investir em plataformas de checagem de fatos, iniciativas de educação midiática e regulamentação das plataformas digitais.
Promoção do diálogo e da civilidade: incentivar o debate construtivo e respeitoso, valorizando a diversidade de opiniões e a busca por um consenso.
Fortalecimento das instituições democráticas: defender a liberdade de imprensa, o acesso à informação e a participação política.
Este último exemplo, se sob uma avaliação com isenção, de cada brasileiro, seria lapidar para uma aprendizagem digital necessária. Os eventos com alguma relação às eleições, desde as manifestações de dez anos atrás seriam bastante pedagógicos, contudo não foram.
SOCIEDADE SAUDÁVEL
A construção de uma sociedade saudável com ou sem um ambiente digital exige a troca de ideias e aceitação do contraditório. A maioria daqueles que arrotam nas redes sociais pedindo democracia e acusando adversários de ditatoriais são os piores. A maioria destes influenciadores e pregadores não defendem a busca do conhecimento de cada um, defendem seus princípios e o obscurantismo.
Desta forma, seja no palco político global ou nas interações digitais do dia a dia, a luta contra a tirania odiosa requer trabalho duro. Seja na defesa incansável da liberdade de expressão e no respeito pelas opiniões divergentes, devemos persistir. Com toda a certeza, a diversidade de pensamento não deveria ameaçar qualquer outra ideia, se ambas possuem fundamentação.
Por outro lado, as artimanhas da ideofobia crescente contaminam as redes sociais e a sociedade em geral. É, desse modo, o maior obstáculo ao diálogo, ao compromisso e ao crescimento pessoal e intelectual. No entanto, ao reconhecermos sua existência e tomarmos medidas para combatê-la, podemos criar diálogos mais abertos e compreensivos.
Em suma, somente a educação para a mídia, o combate à desinformação e o compromisso com a civilidade devem ser a base da democracia. E devemos, outrossim, estar alertas e combater as armadilhas que os déspotas das redes sociais nos proporcionam.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) Miguel de Unamuno manifestou-se sobre a ideofobia algum tempo antes dos nazistas colocarem em prática aquilo que ele preconizou. Sua frase "... As ideias trazem a ideofobia, e a consequência é que as pessoas começam a perseguir os seus vizinhos em nome das ideias..." é definitiva. E o que vemos atualmente é apenas uma repetição em larga escala mundial e com mídias digitais.
(1) "Entre sem bater - Miguel de Unamuno - Tirania Odiosa" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/02/12/entre-sem-bater-miguel-de-unamuno-tirania-odiosa/
(2) "Entre sem bater - Bernardin de St. Pierre - As Narrativas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/07/entre-sem-bater-bernardin-de-st-pierre-as-narrativas/
(3) "Entre sem bater - Bill Clinton - Destruição da Verdade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/13/entre-sem-bater-bill-clinton-a-destruicao-da-verdade/