Entre Sem Bater - A Loucura

Machado de Assis disse:

"... a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente ..."(1) in O Alienista.

Machado de Assis seria daquelas pessoas que, se vivesse hoje, seria símbolo das oligarquias para exemplificar a meritocracia. O cara que era para ter uma vida curta, desde a infância, mas venceu. Entretanto, contraditoriamente, teve pais que sabiam ler e escrever e viu que para evoluir tinha que saber mais do que eles todos juntos. Indiscutivelmente, foi um sobrevivente, numa época em que as oligarquias mais oprimiam e exploravam os afrodescendentes.

A LOUCURA

Em primeiro lugar, a loucura é uma condição que sempre teve preconceito e sua definição passa por dogmas e crenças. Desse modo, a visão do personagem Simão Bacamarte em "O Alienista" reflete o que Machado de Assis via na sociedade em que viveu. Com toda a certeza, ele teve inspiração em pessoas e fatos reais, e é assim desde o princípio, desde os filósofos gregos.

É provável que todos, mesmo os não filósofos, tenham um quê de Simão Bacamarte. Entretanto, qualquer um que leu a obra não aceitará de bom grado receber a alcunha de "Simão Bacamarte". Por outro lado, quem não leu não vai entender nada mesmo sobre qualquer analogia de ilhas e continentes.

VIDA IMITA A ARTE?

Existe, na história da humanidade, algumas premissas ou chavões curiosos. A questão da vida imita a arte ou a arte imita a vida é uma delas. Enfim, um mistério que nunca será objeto de alguma revelação, nem com a inteligência artificial(IA)(2).

A loucura na arte e na literatura é, sem dúvida, um tema muito interessante e complexo, que diversos autores, artistas e pensadores exploram. A loucura é uma forma de expressão humana para a ruptura, transgressão, questionamento, crítica, resistência, invenção, criação e liberdade. Por outro lado, é uma forma de sofrimento, de exclusão, de silêncio, de opressão, de alienação, de destruição, de limitação.

Um antagonismo interessante e que depende de um único fator: de qual perspectiva (ou lado) está quem fala sobre a loucura.

Desse modo, o objeto de estudo de Simão Bacamarte, tornou-se um oceano para ele em função do que viu nos outros. E uma ilha para aqueles que viam aquele cara apontando dedinhos na direção dos "loucos".

A loucura tem, por exemplo, diferentes perspectivas, dependendo do contexto histórico, social, cultural, político e pessoal em que se manifesta. Ela tanto pode ser um problema ou uma solução, uma doença ou cura, uma falta ou excesso, uma ausência ou presença, uma ilusão ou realidade.

(INS)PIRA

Desse modo, ela inspira a arte, a literatura e muitas áreas do conhecimento que, por outro lado, se inspiram nela. Podemos mencionar, por exemplo, que muitas startups e ideias disruptivas da atualidade não seriam possíveis sem doses de alucinação realística. Atualmente, distopias e pensamentos pouco convencionais impulsionam as novidades tecnológicas.

Do mesmo modo que essas distopias dialogam com a arte e a literatura, também podem se opor ou se distanciar delas.

Enfim, a loucura é uma fonte de beleza, horror, poesia, violência, humor, angústia, sabedoria, ignorância, amor, ódio, vida e de morte. E, surpreendentemente, tornaram-se não uma ilha, mas um continente com o advento das redes sociais. Respondam sinceramente: O que vocês chamam de loucura, quando veem a mídia e as redes sociais, não tem um outro lado da moeda que ignoramos?

Não sabemos, inquestionavelmente, nem diferenciar uma fake news  de algo verdadeiro, e queremos rotular a loucura?

O ALIENISTA

O Bruxo do Cosme Velho merece uma página até no Facebook por conta de suas loucuras e seus personagens pouco usuais. Estes personagens, cada um ao seu modo e de acordo com a época do escritor, tinham seus comportamentos "fora do padrão". Desde traições amorosas até julgamentos com requintes de crueldade, copiando o desejo de pensadores e filósofos antigos. Enfim, podemos dizer que os outros são loucos, menos nós.

Assim sendo, em "O Alienista", Machado de Assis expõe desde o início uma severa crítica à sociedade e sua razão e loucura. Desde o início da obra, o tema que estava na moda entre os estudiosos do comportamento da sociedade e a segregação se faz presente. Ficamos imaginando como seria o talento de Machado de Assis escrevendo o alienista nos dias de hoje. Decerto, não haveria uma editora sequer a se interessar pela obra que demonstrasse não estarmos numa ilha. A não ser que ao invés de Bacamarte, o sobrenome do protagonista fosse algo como Kalashnikov(*).

Ilha ou Continente

A frase de Bacamarte surgiu enquanto eu navegava pelo mar infinito das redes sociais, um continente de insanidades. Por outro lado, é possível perceber que para a maioria é apenas uma ilha da loucura que não pertence a eles. A ideia de uma ilha, um território distante e isolado, é mais confortável para a maioria das pessoas como o alienista de Machado de Assis. Contudo, a explosão da Internet e acontecimentos como a pandemia em 2019 mostrou que agora somos um continente sem limites. Em outras palavras, sem limites geográficos, regionais, culturais e sociais, numa guerra em cada canto da nossa sociedade.

Na era digital, a loucura se manifesta de formas tão diferentes e maiores do que as cores de um caleidoscópio de alta definição. É a histeria coletiva que se propaga em memes e hashtags e que, com a chegada da IA, ficará sem controle. Mais uma vez, podemos traduzir a busca incessante por aprovação e a distorção da realidade através de filtros e edições como insanidade. Como se não bastasse, a proliferação de teorias conspiratórias e fake news e a radicalização de opiniões e o ódio fecham o sanatório.

ILHA

A ilha da loucura se transfigurou em um arquipélago de ilhas, cada uma com suas próprias regras e habitantes, inclusive em terra firme. Em uma, encontramos os narcisistas, adoradores de selfies e pela construção de uma imagem irreal de si mesmos. No outro lado, os fanáticos com suas crenças religiosas, atacando qualquer um que ouse discordar de sua insanidade. Há ainda duas ilhas: dos ansiosos, vítimas do medo constante e paralisante; e dos deprimidos, submergindo num mar de tristeza e desesperança.

Costumo dizer uma frase que intriga muitas pessoas quando me perguntam "... está tudo tranquilo?".

- Estou mais tranquilo do que cozinheiro de hospício.

Com toda a certeza, um hospício é uma ilha onde cozinheiro não teme qualquer reclamação sobre a comida que faz. Pode parecer, e é, uma espécie de preconceito e uma brincadeira que, atualmente, pode ser politicamente incorreta. Entretanto, em algumas situações é importante mostrar que as perspectivas podem ser bem diferentes da que estamos vendo.

Não tem nada de tranquilo na ilha.

CONTINENTE

De acordo com a visão de Bacamarte a loucura era uma ilha, de repente, algo o fez mudar a visão para um continente. Surpreendentemente, ele manteve sua visão e racionalidade com a analogia de um oceano, maior que ilhas, arquipélagos e continentes. Esta referência dá uma dimensão de como estamos na atualidade em relação às loucuras do cotidiano.

No continente da loucura, a razão se torna um farol cada vez mais distante, antes, hoje e amanhã, e parece não ter retorno. A verdade(3) se dilui em um mar de informações, a empatia se perde em meio à indiferença e ao egocentrismo. A loucura se tornou banal, tanto a real individual como a coletiva, tudo é "normal" e confunde-se com liberdade de expressão.

Mas, assim como na obra de Machado, a lucidez ainda persiste em algumas mentes, que sofrem bullying como se Bacamartes fossem. Em suma, neste mundo digital de insanos, somos os náufragos da razão, navegando em busca de terra firme. Empunhamos a Pyxis(4) da crítica, o mapa da compreensão e a âncora da esperança e racionalidade.

NAVEGAR É PRECISO

Desta forma, entendemos que não existe caminho de volta, e muito menos que todos sigam o caminho que queremos ou achamos melhor. Se cada um não entender o que a expressão tolerância pode significar nestes momentos turbulentos e malucos, não avançará. E não adianta ficar orando pois muito em breve a IA vai destruir discursos de pregadores, coaches, influencers e picaretas.

Da mesma forma que em vários temas polêmicos, podemos dizer que falar da loucura é uma missão árdua, mas não impossível. Por isso, é preciso navegar com cautela pelas águas turbulentas das redes sociais. Em certos momentos, discernindo o real do virtual, o sensato do insensato e reagindo de acordo com os interlocutores.

As frases que muitos enganadores divulgam como:

É preciso resgatar a empatia, o diálogo e a escuta atenta;

Temos que construir pontes entre as ilhas da loucura, promovendo o respeito à diversidade e o debate sadio;

Podemos ser agradáveis, nos desculpar e agradecer, mesmo em momentos turbulentos;

são enganosas e iludem muita gente, não resolvem nada e só procrastinam os problemas e análise crítica da situação.

A loucura não é, acima de tudo, um destino em tempos de alta exposição à informação, mas uma escolha. Podemos escolher nos afogar no mar da desinformação e do ódio, ou podemos nadar contra a correnteza em busca de terra firme.

TERRA FIRME

Analogamente aos espaços geográficos que Bacamarte cita, temos os equivalentes reais e digitais. O agravante do mundo digital, que deveria ser atenuante, é que ele não tem os limites físicos da analogia nos tempos d´O Alienista.

A ilha da loucura ainda existe e tornou-se um arquipélago imenso, como na polarização política recente no Brasil ou na guerra da vacina. Por outro lado, existe a utopia de que o continente da razão está em nossas mãos (não está, perdemos nossa privacidade). Cabe a nós pensarmos em nossos limites e desejos e decidir qual futuro queremos construir. Outrossim, ressalto que a opção de fugir e se omitir é a pior para todos.

LOUCURAS DA SOCIEDADE MODERNA

Alguns exemplos de como se manifestam as pessoas na sociedade atual e que refletem que os arquipélagos são imensos.

Polarização política: A proliferação de "bolhas" online, onde as pessoas se cercam apenas de informações que confirmam suas crenças. A polarização leva, sem dúvida, à radicalização de opiniões e à dificuldade de diálogo.

Teorias conspiratórias: A crença em teorias conspiratórias, sem fundamento na realidade, levam a comportamentos antissociais e prejudiciais à sociedade.

Cultura do narcisismo: A obsessão por selfies e pela construção de uma imagem irreal de si mesmo gera problemas de autoestima e ansiedade. As pessoas narcisistas, inesperadamente, veem o narcisismo nos outros primeiro do que no próprio espelho.

Cyberbullying: O uso das redes para intimidar, assediar ou humilhar outras pessoas provoca graves consequências psicológicas para as vítimas. Inexplicavelmente, adultos até incentivam esta prática em crianças que fazem o que os pais orientam.

Depressão e ansiedade: O uso excessivo das redes sociais, certamente, tem associação com o aumento dos índices de depressão e ansiedade e alguns crimes.

COMBATER O BOM COMBATE

A princípio, nem tudo é tragédia e existem verdadeiras ilhas e bolsões de combate à insanidade que atualmente vivemos. Desse modo, devemos ajudar àqueles(as) que praticam alguma ações, sem querer aparecer por praticá-las.

Desenvolver senso crítico: Devemos incentivar e aprender a discernir informações confiáveis de fake news e a questionar conteúdos que recebemos.

Promover a empatia: É importante se colocar no lugar do outro e tentar entender diferentes pontos de vista. Embora seja um termo usual, e todos o defendam, existem certos cuidados, empatia demais não cheira bem.

Dialogar: É importante manter um diálogo respeitoso com pessoas que pensam diferente de nós.

Denunciar cyberbullying: É importante denunciar casos de cyberbullying para que as vítimas possam receber ajuda.

Fazer uso consciente das redes sociais: É importante usar as redes sociais com moderação, priorizando o contato real com outras pessoas. Aqui é uma ação bem retórica pois cada um acha que tem bom senso suficiente e que sempre age assim, mas fica o registro.

A loucura é, enfim, um fenômeno humano, que desafia as fronteiras entre a razão e a insanidade. Fica no limite entre a normalidade e a anormalidade, entre a arte e a não-arte, entre a literatura e a não-literatura. É impossível não termos um pouco de Simão Bacamarte para entender o problema.

O oceano da razão está num processo inverso dos oceanos da Terra. "Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*) O livro não poderia se chamar "O Alienista", tinha que ser "O Coach" ou "O Influencer", para vender..

(1) "Entre sem bater - Machado de Assis - A Loucura" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/02/11/entre-sem-bater-machado-de-assis-a-loucura/

(2) "Entre sem bater - Stephen Hawking - Inteligência Artificial" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/03/entre-sem-bater-stephen-hawking-inteligencia-artificial/

(3) "Entre sem bater - Bertolt Brecht - A Verdade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/02/06/entre-sem-bater-bertolt-brecht-a-verdade/

(4) "Pyxis - Wikipedia" em https://en.wikipedia.org/wiki/Pyxis