Carnaval, antigamente
No Carnaval, antigamente, nossa alegria principal não era pintar a cara com Maizena, nem o barulho ensurdecedor e doce das marchas delirantes, muito menos o álcool legalizado. Éramos ainda crianças: o álcool não nos fazia ainda o menor sentido. Antigamente, no Carnaval, por impressionante que não pareça, o que mais nos comovia era a inocência do mundo.
Um mundo inocente, tabaréu, diáfano, personificado no semblante alegre dos matutos das roças, das senhoras desquitadas ou não, das moças pulantes que nos melavam a cara com o pó branco, que nos transformava em espécie de fantasmas. Todo mundo parecia meio ingênuo, inexperiente em matéria de safadezas, no Carnaval de antigamente.
E, de fato, éramos. Ríamos alto, dançávamos descalços e meio nus no asfalto de barro, bêbados de um contentamento inexplicável, desconhecedores do fenômeno inflação, do que venha a ser o absolutismo, o Triângulo das Bermudas, a metafísica do belo, a álgebra... Naquela época, naturalmente, ainda não havia PIX, nem as telas coloridas dos celulares, nem tevês em cores. Nossa maior atenção, no Carnaval de antigamente, portanto, era o momento, a fraternidade que nos unia e nos tornava tão parecidos e próximos.
O Carnaval, antigamente, era Carnaval democrático. Não havia camarote, nem sambódromo Marquês de Sapucaí, nem abadás, nem seguranças para controlar o trânsito de pedestres. Misturados na folia, difícil discernir quem era filho de lavrador, de dono de mercearia, de senhor de engenho... As cidades eram ainda pequenas; o povo, quase em sua totalidade, com exceção dos latifundiários, ignorante; os matutos, tremendamente tímidos; as moças, meu Deus, as moças!, tão moças, tão sonhadoras, tão lindas!
Naquela época, para ver desfile, não necessitava ingresso. Íamos, primeiro, para a janela, a fim de assistir à chegada da turba alegre; depois, para a rua; de repente, quando nos dávamos conta, já estava todo mundo misturado, e ninguém pedia a ninguém que se retirasse.
O Carnaval de antigamente passou. Deixou, além de nostalgia, três órfãos: João, Tereza e Raimundo. João formou-se em farmácia, e atualmente vive à base de ansiolíticos; Tereza viajou, mas ninguém sabe para onde; e Raimundo passou a detestar Maizena.