História de Carnaval

É Carnaval! Estou sentado em um bar no Pelourinho, afastado o suficiente dos desfiles e da música alta. Observo o comportamento de dois homens que estão na mesa ao lado. Um deles - fantasiado de bobo da corte, com um chapéu no formato de cone e cheio de guizos - se chama Fortunato. O outro, que trajava vestes normais, não consegui saber o nome. Duas mulheres estavam com eles. Fortunato, que parecia estar bêbado de tanto beber vinho, zoava sem parar o suposto amigo. Este aparentava estar farto, zangado e doido para “meter a porra” no seu chalaceiro. Ele se segurava, às vezes apertava o punho, como se estivesse se preparando para agredí-lo, mas logo amolecia.

Em determinado momento, Fortunato disse algo - não consegui escutar o quê - que constrangeu (ainda mais) o seu alvo de gozação. As mulheres até saíram de perto dos dois. O zoado se levantou com ímpeto e começou a falar. Ele viu que eu estava prestando atenção no seu desabafo e continuou a falar, desta vez olhando para mim.

- Esse cara… - disse ele. - “comeu água” o dia todo. E quando “come água”, fala merda sem parar.

Fortunato colocou os braços em torno do pescoço do "amigo" zoado e também começou a falar olhando na minha direção.

- Ele é meu parceiro. Ele sabe disso. - disse Fortunato, que falava como se estivesse assaz embriagado.

Depois, o clima de uma eventual altercação aparentemente se desfez porque os dois começaram a falar de vinho. Ainda era perceptível que o homem zoado estava um tanto zangado. No entanto, ele se continha.

- Vamos ali no porão. Eu quero te mostrar um barril de vinho que adquiri. - disse o homem para Fortunato.

Ao dizer isso, percebi que o homem zoado passou de zangado para malicioso. Havia alguma segunda intenção por trás daquele convite. Só não faço ideia do que seria. Na última vez que vi ambos, pouco antes de supostamente descerem ao porão, o amigo zoado ainda expressava uma malícia sutil; Fortunato ria e demonstrava jubilo.

Horas depois, comecei a refletir sobre essa alegria de Fortunato. Notei que as mãos dele estavam cheias de calos. Parecia um trabalhador da construção civil, talvez seja até um “peão”, desses que saem para trabalhar às sete da manhã e só voltam para casa às dez da noite. Se for realmente isso, aquele verso da música “Sonho de um Carnaval”, de Chico Buarque, foi seguido à risca por Fortunato: “Carnaval, desengano/Deixei a dor em casa me esperando”. Carnaval seria a festa em que surge a oportunidade de esquecer, pelo menos um pouco, as aflições do cotidiano. O autor de Eclesiastes disse que todas as obras “debaixo do sol” são “vaidade” e “aflição de espírito”. Uma interpretação contemporânea pode considerar (também) que as “obras” citadas pelo Rei-Filósofo são as obras da construção civil. Em tese, o Carnaval permite um descanso para a aflição do espírito. As próprias fantasias indicam isso. Na mesma canção de Chico, o eu-lírico diz “e brinquei e gritei e fui vestido de rei”. O trabalhador pode fingir que é rei, que é príncipe… o que ele quiser.

O problema é que nem todo mundo deixa a dor em casa esperando. Nem a dor, nem a raiva, nem a frustração. O Carnaval acaba virando a festa em que pessoas acabam descontando nas outras toda a aflição do seu cotidiano. Há brigas e até mortes. Alguns vão às ruas apenas para bater. Às vezes a forma bruta de “desabafar” nem é com o uso da violência física. É possível que Fortunato tenha encontrado na gozação uma forma de descontar sua aflição em cima do seu suposto amigo. E ao sorrir maliciosamente, o homem alvo de chalaça talvez estivesse pensando em algum modo de revidar a agressão.

Ao trazer o verso de Eclesiastes aos dias de hoje, talvez seja possível afirmar que o trecho “todas as obras debaixo do sol” tenha um sentido mais literal e rigoroso. Tudo é “vaidade” e “aflição de espírito”, inclusive o próprio Carnaval.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 10/02/2024
Reeditado em 10/02/2024
Código do texto: T7996168
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