FELIZ, APESAR DE TUDO

Fruto de uma árvore genealogicamente humilde, aqui, com o meu primeiro choro alumiaram-me numa árida e sofrida região do terceiro mundo.

Surgi tal qual um algarismo a ser inserido nos registros e nas estatísticas de opinião pública, onde, ainda, aqui estou: sedento de justiça social junto a uma leva de milhões de compatriotas que só servimos como dados de referência para a rolagem das dívidas, ou, apenas, como ferramenta propícia para o enriquecimento de exploradores da pobreza.

Mas, mesmo com tantas mazelas, ainda me sobra espaço para sorrir e dizer que sou feliz, e creio que o digo pelo simples e voluntário ato de pensar.

– Sim, sou feliz – repito -, apesar de ter saboreado o meu primeiro chocolate aos 14 anos de idade, e isto graças ao Senhor Kennedy. Foi este bondoso homem que através do programa “Aliança para o Progresso” mandou vitaminar as criancinhas desnutridas do mundo afora e inclusive as dos sertões do Brasil e, entre elas, eu. Foi o que me disse a professora Teresa, a grande desbravadora da minha negra ignorância. Foi ela quem me confidenciou ser o Tio San o mandante daquela deliciosa comida feita à base de chocolate em pó, e eu, na mais pura ingenuidade, julgava ser o Tio San um dos irmãos de meus pais.

Diminuíram-se assim minhas fraquezas e adquiri mais energias com o dito alimento, do qual, se bem me lembro, estava higienicamente embalado em saco plástico – creia, eu nunca tinha visto um saco plástico –, e nele o slogan:

“USA X BRAZIL

ALIANÇA PARA O PROGRESSO

ALIMENTO PARA A PAZ “

(Acredite: nossa guerra com o Paraguai ficara lá atrás e eu nunca entendi o porquê do tal Alimento para a Paz).

Foi ai que decorei a bandeira da Nação USA e passei a vê-la muito mais bela e poderosa e, sinceramente afirmo, ela ocupava quase toda a embalagem do chocolate, enquanto que a de destino, a auriverde, bem miudinha lá num cantinho do saco, mal se podia ler o recado a nós atribuído: “Ordem e Progresso”.

Meu status como comedor de chocolate americano estava em alta e eu nem imaginava que naquela mesma época as criancinhas do país Biafra, viventes lá no além – mar e tão desnutridas quanto eu, também se empanturravam do dito alimento, e que, em suas angelicais inocências - tais quais as minhas -, também acreditavam, piamente, serem verdadeiros sobrinhos do Tio San.

Mas, num alvorecer de certo dia o destino cumprindo seus planos me fez estar sentado num banco de jardim d’uma cidade interiorana, aonde eu me deliciava com as músicas do serviço de alto-falantes, quando abruptamente tudo parou, e o locutor com uma voz embargada e trêmula, balbuciando anunciou:

– Urgente: “Dalas-Texas...” o presidente John Fitzerald Kennedy acaba de falecer vitimado por atentado...”.

Estupefato com aquela estupidez eu me arrepiei dos pés à cabeça e exclamava extasiado, gritando e interrogando para quem por ali passava.

– Mataram Kennedy! – – Mataram Kennedy? Mataram Kennedy?

Era só o que se dizia.

Era só o que se ouvia.

Com certo pesar o homem do alto-falante repetia aquela lastimada notícia por seguidas vezes sem fundo musical e sem qualquer comentário. E num piscar de olhos surgiram tarjas negras em portas, janelas e em carros, e tudo parou; e o luto foi iminente; e a comoção espalhou-se em lágrimas por todos os cantos do planeta.

Tive a sensação de ter perdido alguém familiar.

Levantei-me do banco do jardim e silenciosamente me recompus monologando ao vento:

– Não, ele não é nem meu parente e tampouco meu presidente!

Tive calafrios ao imaginar que alguma coisa muito grave estaria acontecendo nos bastidores do poder, e que o mundo, doravante, corria sério perigo frente à temida guerra fria. Só havia um Kennedy para frear a escalada atômica, e agora? como seria sem ele? Morreríamos? Será que nunca mais eu comeria um chocolate em pó? Indaguei-me, e nesse instante me lembrei de um tristonho diálogo que, há anos atrás, ouvi entre minha mãe e nossa vizinha:

– Comadre Maria! Ô comadre Maria!

Nervosa e eufórica don`Ana gritava com a cabeça para fora da janela.

– O que é comadre Ana? – Dizia minha mãe segurando-me ao colo.

– O presidente Vargas morreu! O rádio disse que foi suicídio.

– Valha-me Deus! Suicídio não! Suicida não entra no Céu, comadre! – questionou minha mãe pondo em pauta um dos princípios da sua fé e concluiu sua tristeza dizendo: e agora, comadre? O que vai ser de nós, pobres?

Não deu para disfarçar uma gota rolando no seu rosto.

– Estamos perdidos, comadre! – devolveu-lhe don`Ana, também lacrimosa.

Naquele instante, movido pela emoção, também chorei, mas certamente foi o choro de uma criança que nem mesmo sabia o significado da palavra suicídio. Creio que aquelas pequenas lágrimas foram pelo fato de me sentir um pobre prematuramente desamparado, e que, sequer, ainda não havia comido um chocolate.

Depois me senti calejado com o descaso que me impuseram e consolei-me ao me ver equiparado a outras tantas milhões de almas desamparadas que, provavelmente, ainda vivem na mais promiscua necessidade, sem nunca se ter deliciado de um chocolate em pó nem made in USA, nem made in Brazil, nem made in lugar nenhum.

SP julho/98

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 09/02/2024
Código do texto: T7995664
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