A difamação da loucura
Na casa lotérica, um homem chamado Erasmo se bateu em mim acidentalmente. Sei que ele se chama assim porque ele deixou a carteira de identidade cair no chão. Abaixei-me para pegá-la e acabei vendo o nome.
- Desculpe, rapaz. E obrigado. Tô com a coluna ferrada, não seria uma boa ideia me abaixar assim. - ele me disse e gargalhou logo em seguida.
- Tranquilo. - respondi.
Era um dia de sábado e a lotérica estava mais lenta e modorrenta do que o normal. Eu já estava há quase meia hora na fila. Dos quatro guichês, três estavam disponíveis. Na prática, apenas dois estavam. Um homem tomou conta do guichê nº1 como se fosse dele. Ele estava ali desde antes de eu chegar. Talvez por uns quarenta minutos. Isso estava começando a revoltar as pessoas da fila. Um outro homem que tinha acabado de ser atentido resolveu externar essa raiva:
- Esse cidadão está ali há muito tempo! Acho que está há uma hora ali! Isso é um absurdo!
- O que ele está fazendo ali? - perguntou uma mulher.
- Quem sabe?! Parece que é jogo.
Na casa lotérica havia uma televisão. Era hora do almoço. Ou seja, a hora em que os chamados “programas populares” capricham nas notícias em que a carnificina é escancarada. Como se sabe, é uma boa ideia ver e ouvir porcaria enquanto se está almoçando. Informaram sobre um homem que havia torturado e assassinado o outro por motivações políticas. Não apenas o torturou e matou por uma razão fútil, mas tentou sumir com um corpo. É melhor omitir, nesta crônica, o resultado disso. Porém, esse bárbaro caso virou assunto de três coroas que estavam logo atrás de mim na fila. Olhei para trás e vi que Erasmo estava entre eles.
- Esse assassino é maluco! - disse um deles. - Pra fazer algo assim só pode ser louco!
- Eu também acho. - disse outro. - Uma pessoa normal não faz isso.
Erasmo interviu a favor da loucura.
- Loucura nada! Isso aí é perversidade. As pessoas são cruéis e não perdem a oportunidade de jogar a culpa na loucura, na maluquice.
A reflexão de Erasmo fazia sentido. Há quem creia que o ser humano é incapaz de cometer crueldade se estiver com o pleno funcionamento da sua cognição e razão. E isso depois de toda a maldade que já aconteceu. É evidente que há assassinatos provocados por gente que não bate bem. O problema é querer aplicar essa tese sem um mínimo de análise. Há criminosos usando dessa desculpa para justificar seus crimes. Há a madame que profere xingamentos racistas contra um entregador de aplicativo e quando o seu espetáculo do horror é exposto para o Brasil ver, ela diz que fez aquilo porque não tinha tomado remédios. No interior da Bahia, uma mulher invadiu a loja de uma judia e a agrediu e xingou. Nas redes sociais, foi chamada de “louca”. É a loucura sendo difamada.
Enquanto isso, o homem continuava no guichê nº1. Estava há mais de uma hora ali. Eu estava há quase cinquenta minutos esperando minha vez. A fila andava como uma lesma em câmera lenta. E a loucura continuava sendo assunto, mas não a loucura que supostamente provoca a barbárie e, sim, a suposta loucura que estaria fazendo aquele homem se apoderar do guichê. As pessoas começaram a discutir sobre a sanidade mental dele. Uma mulher que estava lá na frente, e que se dizia médica, deu o “diagnóstico”:
- Não é normal. A pessoa não querer sair de um guichê e gastar uma fortuna com jogos de loteria… Não é normal.
Olho para trás e vejo Erasmo balançando a cabeça negativamente. Ele estava indignado. A loucura mais uma vez estava sendo responsabilizada pelos atos do ser humano.