O sistema caiu
Vou ao bairro de Brotas. É lá que está a agência bancária onde me cadastrei para ter meu cartão de conta poupança. Foi difícil entrar, pois há manifestação na frente do banco. Um dos seguranças da instituição financeira espancou um jovem negro. O rapaz está em coma e é improvável que algum dia acorde. No entanto, notei que os manifestantes tinham objetivos maiores. Um dos cartazes dizia: “contra o sistema!”. Parece coisa dos anos 60 e 70. Consigo entrar, apesar de alguns dos protestadores me “alertarem” que eu poderia acabar sendo espancado.
- Você é um jovem negro! Esse banco é racista! Eles vão lhe bater até te matar.
A probabilidade para alguém como eu entrar no banco e sair morto é baixíssima. Mas como um jovem morreu ali, ainda é possível acontecer. No entanto, por causa desse mesmo acontecimento e da pressão que havia sobre o banco, não é desarrazoado supor que os seguranças estavam menos inconsequentes e mais cautelosos. Sentar a mão em alguém, quando o bárbaro caso do jovem quase morto ainda está quente, seria burrada e as manifestações poderiam ganhar contornos imprevisíveis e brutais. Então eu estava relativamente seguro.
Aguardo nas filas para usar o caixa eletrônico. Há vários caixas eletrônicos, mas quase nenhum funciona. As pessoas estavam furiosas, impacientes. Um homem começou a dar tapas na tela da máquina. Um segurança vê, mas parece claudicante. É a pressão. Ele poderia ir falar com o cara, mandar ele parar de bater. Todavia, a coisa poderia descambar para altercação e, quem sabe, para alguém espancado e morto.
Depois de 40 minutos aguardando, chegou a minha vez de usar um dos dois únicos caixas eletrônicos que funcionam. Percebo que na tela há marcas de palmas da mão. Insiro o cartão. Aparece escrito na tela: “aguarde, estamos fazendo a leitura do seu cartão”. Segundos depois: “não conseguimos fazer a leitura do seu cartão. Insira novamente”. Segui a recomendação. As duas mensagens voltam a aparecer na tela. Olho para trás, a fila imensa. Tento novamente e nada de leitura do cartão. Limpo o chip e nada. Olho de novo para trás, as pessoas me olham com um semblante irritado. Estou começando a ficar preocupado. Se eu demorar mais, talvez eu acabe sendo espancado e não será pelo segurança.
- Dá umas tapas. - disse um homem que estava na fila.
Olho para trás e ele faz um gesto, me ensinando como se deve bater.
Estava tão desesperado que acatava qualquer sugestão. Dou tapas. Aparece escrito na tela: “máquina em manutenção. Tente a próxima”.
- Aaaaaaaaaaah - berrou todo mundo atrás.
Um atendente do banco me pega pelo braço e diz: “entra logo aí”. Ele estava mandando eu entrar na agência.
- Mas por quê? - pergunto.
- Pro seu próprio bem. - ele diz.
- Hã?
- O chip do seu cartão está com defeito. Entre na agência, pegue uma senha e peça um novo cartão.
Em seguida, o mesmo atendente anuncia que o “sistema caiu, o sistema está fora do ar”. Uma explicação que esclarece o motivo para os caixas eletrônicos estarem ruins e por que a agência está lotada. A informação se espalha e do lado de fora pode-se escutar uma vibração, como se várias pessoas comemorassem ao mesmo tempo. Há fogos de artifício e muita festa.
Peguei a senha C220. Olho para a tela e vejo que ainda estava no C052. Ou seja, vou mofar ali. Vale a pena passar por isso por causa de um chip de cartão que não funciona?
Mesmo me questionando, esperei um pouco. Um homem senta do meu lado. Ele estava na mesma fila que eu para usar o caixa eletrônico.
- Você foi o rapaz que deu a tapa na máquina… a tapa que fez ela entrar em manutenção.
- Infelizmente, sim. O senhor conseguiu usar algum caixa?
- Sim, mas não deu para fazer o que eu queria. Então, estou aqui.
Ele fica quieto por uns segundos e diz:
- Você se safou por pouco.
- Quê?
- O jovem que levou porrada. Ele não apanhou só do segurança. O cara levou a culpa, mas ele não foi o único.
Descubro que o jovem está vegetando no hospital porque pessoas que aguardavam na fila ficaram furiosas com ele, pois ele fez a única máquina que funcionava no dia entrar em “estado de manutenção”. Mais ou menos o que ocorreu comigo.
- O segurança também bateu porque ele também queria usar o caixa eletrônico.
- Então não foi racismo?
- O segurança também era negro.
Confesso que esse detalhe me tocou. A meu ver ainda era possível ter o componente do racismo por trás ainda que os espancadores fossem todos negros. Lembro de um amigo advogado e pessoa negra que foi barrado em um fórum por um segurança que também era negro. O homem que impediu sua entrada não acreditou que ele era advogado. Ele cresceu acreditando que negros só faziam “trabalho manual”. Era inconcebível para ele que um negro fosse advogado.
Nelson Rodrigues contou em uma crônica que pegou um táxi cujo motorista era um homem preto. O taxista confessou a ele que não para o carro para outros pretos durante a noite. Em outro texto, o grande cronista diz: “eis o que aprendi no Brasil: aqui o branco não gosta de preto;e o preto também não gosta de preto."
Na saída, os manifestantes vibravam. Alguém pergunta o motivo e um deles responde:
- Não ouviu a informação que veio do banco? O SISTEMA CAIU!