DA CAVERNA AO BELVEDERE

O prédio ficava muito bem localizado no bairro do Cosme Velho, fazia limite com a residência do então todo poderoso Roberto Marinho.

Visto da rua, a construção mantinha certa nobreza, predominava em sua fachada o rosa com muitos detalhes em branco. Seu acesso se dava por uma diminuta ponte em arco sobre as águas do icônico Rio da Carioca.

O prédio remontava à época das construções com paredes estruturais, para leigos, a largura das laterais do prédio muitas vezes superava um metro de largura, que iam afinando à medida que subiam os seus quatro andares, algo incomum para construções do iniciozinho do século XX.

Morei no segundo andar de fundos, desse imóvel com duas unidades por andar, em um apartamento de dois quartos que primava pela ausência de luz natural, na lateral existia uma construção que imagino servia para abrigar serviçais no passado. Já nos fundos, a Ladeira dos Guararapes passava na altura equivalente ao quarto andar, a uma distância inferior aos cinco metros.

A falta de sol era tamanha, resolvi pintar de amarelo ouro os contornos da janela e os rodapés para resgatar a existência do astro rei. Para efetivamente saber como estava o dia, era preciso descer as escadas e caminhar até a frente do edifício.

A sala deste apartamento guardava característica única, uma sala com inimagináveis seis portas e duas janelas, praticamente não sobrava muito espaço para paredes. Confluía para esta sala a entrada social, banheiro, cozinha, varanda, dois quartos, janela e uma grande báscula.

Depois de três anos morando e pagando um aluguel reduzido, tínhamos conseguindo fazer um caixa que serviu para pensarmos numa entrada para compra de um imóvel.

Numa das muitas visitas a apartamentos em Santa Teresa, um realmente nos deixou encantado, mesmo sem tê-lo efetivamente conhecido. Na visita a corretora esqueceu de levar a chave do imóvel e pudemos simplesmente conhecer os corredores e a cobertura de uso comum. Pronto, isto bastou, pois a panorâmica de 360° da cidade nos enfeitiçou.

Lá de cima era possível avistar, caminhando da esquerda para a direita da distante Serra dos Órgãos, passando pela baía da Guanabara, parte do Flamengo, Botafogo, Laranjeiras e terminando o tour no segundo ponto mais alto da cidade, o Pico da Tijuca com seus 1.022 metros de altitude.

A divisão interna do apartamento não era das melhores e fomos dentro do possível, adequando o imóvel às nossas necessidades. O maior problema era a sala, que por incrível que possa parecer, não dispunha de janela ou qualquer possibilidade de entrada de luz natural.

A primeira alteração foi retirar duas paredes da cozinha e duas portas, e assim através de uma cozinha americana passar a receber luz natural diretamente do prisma de ventilação do prédio, lembro que o apartamento ficava no último andar. Providenciamos uma janela de pinho de Riga com almofadas de vidro jateado, que assim passou a receber ventilação e claridade.

Logo em seguida, solicitei ao vizinho lateral a permissão para abrir uma báscula na empena do prédio. Essa sim foi uma bela sacação, pois medindo algo como 1,5 metro de comprimento por 30 centímetros de largura, e claro incorporei ao ambiente uma paisagem espetacular, com muito céu e o Pico da Tijuca, que variava sua luminosidade durante o dia, até incorporar o breu da noite, apenas quebrado pelo efeito lua.

Usei e abusei do pinho de Riga, madeira trazida como lastro das caravelas, mas que até hoje ao ser cortada ainda exala forte odor e às vezes seiva. Além do janelão da área, ela serviu também para fazer bancadas e detalhes nos armários da cozinha e prateleiras acima das bancadas.

Os quartos que originalmente contavam com portas e janelas para uma sacada foram todos retirados e incorporei algo como oito metros quadrados aos cômodos. Foi também em uma loja de material de demolição que consegui oito janelas de guilhotina em peroba rosa, detalhe, todas contavam com um peso que corria embutido na estrutura e facilitava o subir e descer de suas pesadas bandeiras.

Ainda não contente com a iluminação do apartamento, incorporei de forma fixa uma bandeira dessas janelas no banheiro e outra em um dos quartos. Para completar esse projeto de iluminação natural, na área incorporada aos quartos foi fechada com telhado de vidro aramado.

Acabei incorporando um corredor ao quarto, o transformando em suíte. Antes, consegui fazer um segundo banheiro completo ao lado da cozinha, onde antes era um acesso ao tanque e a um vaso sanitário.

Em qualquer ambiente desse nosso apartamento nunca mais se tornou necessário acender luz durante o dia. Por outro lado, nas ditas tempestades de verão, nossa casa parecia um farol de navegação dentro de uma tempestade, pois o mix de vento, chuva, luzes e trovoadas proporcionavam um espetáculo à parte.

Como difere uma temporada vivida na caverna, principalmente se a experiência seguinte se passa num belvedere.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 07/02/2024
Código do texto: T7993911
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