Patê de Guri
As minhas retinas cansadas guardam muitas recordações...
Algumas, bem esparsas, diria eu, até mesmo enevoadas pelo passar do tempo, da minha infância. Depois vão aumentando e ficando mais precisas na adolescência, na juventude e na vida adulta. Algumas boas, outras nem tanto. Algumas, divertidas, como a que eu vou contar.
Creio que a minha lembrança mais antiga está relacionada a um fato que aconteceu na fazenda em que meu avô trabalhava, no Bairro e atual município de Roseira, na época Distrito de Aparecida.
Segundo as conversas familiares que ouvi durante muito tempo, esse B.O. deve ter acontecido em 1959 ou início de 1960, quando eu tinha 2 anos.
Deve ter sido em um domingo à tarde, pois toda a família estava reunida. Meus avós maternos, meus pais e o rebento aqui, único filho, único neto, e a esperança dos Marques' e dos Nepomuceno's.
Não sei por quê, mas em dado momento entrei embaixo de uma mesa na cozinha, e lá fiquei, acobertado pela toalha que ia quase até o chão. Dalí eu espiava tudo.
Vi quando as mulheres - minha mãe e avó - deram pela minha falta.
- Cadê o Julio Arthur? Cleber, está com você? Méro, tá com você?
Não estava.
Aí detonou o pavor de todos. Para onde foi o Julio Arthur? Para onde? Para onde, ó Senhor? Minha avó rezava para todos os santos do oratório dela.
A lembrança é vaga, mas lembro que fiquei bem quieto embaixo da mesa. Devia estar interessante para a minha cabeça de guri.
Minha avó Geralda, a mais dramática, deu um grito: - será que ele foi para a Dutra? Aqui vale um parênteses para quem não conhece o Vale do Paraíba. A Rodovia Presidente Dutra é a estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Naquela época, tinha pista única, mas o movimento já era considerável.
Deve ter sido o momento do pânico. Em minha cabeça, penso agora, imaginaram que eu já tinha virado patê de guri, e que ia ser tirado da Dutra com uma pá. Alguma coisa assim....
Meu pai, que tinha um porte nada atlético, saiu desembestado para a Dutra. Acho que tinha uma trilha que cortava caminho, e ele foi por ali.
De repente, minha avó olhou no único lugar da casa onde ninguém tinha olhado: embaixo da mesa da cozinha. Levantou a toalha, abaixou, e acabou o teatro. A cortina caiu. Ali estava o enfant terrible, a causa de todo aquele pânico, a desventura da tarde de domingo, o alvo de todo aquele B.O.
Eu gostaria de voltar no tempo e ver a minha cara da criança nessa hora... talvez chupando o dedo... ou com uma chupeta na boca... com um olhar cândido. Enfim, criança é uma coisa terrível mesmo. Apronta as piores coisas, e depois fica com cara de anjo.
Creio que gritaram para o meu pai voltar. Não, não teve patê de guri. Não foi preciso uma pá para me tirar da pista. Bastou levantar a toalha...
Olhando para trás, e hoje avô, imagino o desespero dos meus pais e avós. Mas esta se tornou uma das histórias preferidas da minha família, lembrada quase sempre nas tardes de domingo... e eu ouvia, com aquela cara de bunda.
E a vida continua