A idade da luz
Uma tarde de março, dessas que pintam pedrinhas da cor pêssego em carmim pela água da chuva, foi neste dia(...) Ao exterior banhavam-se as paredes da choupana -- preliminarmente estudada, pré executada e alteada com muito custo por Seu José, pai de Angelina. De sua dama, a participação dava-se aos enredos de flores delicadíssimos e bordejos em argila pouco acima dos batentes. Notável que a espessura dos frágeis adornos era conforme o dedilhar de Olga, amada esposa e mãe; e a José, como sabem, cabia o essencialmente bruto alicerce do lar. Os dois embalavam a filhotinha pela canção natural da tempestade, era como que Deus aprovando-lhes os demorados ofícios particulares e síncronos a cada qual com uma salva de palmas.
Angelina sonhava muito tranquila e sã, em abrigo por aquele simples casebre. Despertara pelo aroma dos bodós aos pés da cama que Olga, sem deixá-la cochilar e perder o prazo das obrigações, oferecia em troca de atividade. Papai estava trabalhando pois aproximavam-se as fartíssimas festas de São João --- sempre lembravam- se de José, e esperavam pelo seu regresso.
"Toc toc" à porta de casa. - Que é isto!? --- Disse Angelina um tanto aflita. Considerou a visita repentina de seu pai, mas como seria possível? Dava cabo aos serviços mais tarde ao entardecer somente, parecia-lhe pouco provável. Depois do "toc toc", pairava à porta, uma pesadíssima aura, o que a fez pensar em nada mais se não escancarar o madeiro e matar de uma vez por todas o que a estava matando em dúvidas. Era um bilhete, escrito rapidamente e às pressas:
"Angelina, como vai você? Pergunto preterindo resposta positiva, sei que está mais do que ótima. Escrevo-lhe este folheto em protesto, e tão rápido que faltou apresentar-me! Meu nome é Isadora. Sou um tanto mais velha do que nove anos, mas não pude crescer! Perdoa-me o amontoado de preposições, logo entenderás porque ainda sou um broto embotado. Venho d'uma era distante da tua, muito à frente de seu tempo, se chama Idade da Luz --- é como deu-se a realidade depois de alguns néscios proporem "ilumina-la" em artifícios pelo fulgor da mentira. Esta luz daqui remete-nos velocidade neste tempo, é de todas as eras sem dúvidas a mais apressada; mais veloz e curta em divagações. Mesmo nossas casas são esguias e tesas para que não se demore a água da chuva a alcançar o chão. Não há gracejos aos batentes porque isto exige divagares e, se escusa-me a franqueza, não há gracejos de forma nenhuma! Mesmo os nossos trabalhos são esguios para que sejam rápidos, e os utensílios seguem a norma quadrática em extensão e teoria --- isto quer dizer que jamais variam entre si. A senhorita já deve saber que as pressas a que propaga-se a luz permeia também relações entre amantes posto que para sempre é tempo demais, não há tempo para isso. Sabes, não há mimos e nem pregas de seda, não há bordejos. A minha mãe desempenha o trabalho essencialmente bruto, e meu pai foi-se embora porque não há tempo de amar. O amor é, Angelina, similar ao cultivo familiar d'uma árvore frondosa: a nutrição da estirpe exige dedicação e constância, o que leva bastante tempo. Agora vês porque envelheci sem maturar a folhagem como você? Sou uma flor sem cuidados, jogadas às quinas d'uma terra mal nutrida. Não há nem mesmo filósofos para sublimar este ofício. Como? Sem retidão, quietude e paciência!
Angelina, ajude-me! Agora que compreendes quê vivo, por caridade, escreve-me um guia feito como para uma criança pequena, ajude-me a viver! Que faz tua mãe ao acordar e aprontar-se às atividades corriqueiras? Que faz teu pai? Como é que porta-se sendo filha? Antes disso: como é que se reza? Como se cozinha e como é que se assea? Careço esta calma complacente. Escreve-me ao verso da folha tua instrução. Por amor à tua mãe!"
Não há termo razoável à surpresa e susto de Angelina ao pronunciar tais palavras comprimidas e desesperadas. Ponderava a possibilidade de estarem lhe pregando peça, mas logo desconsiderou. Não é possível que tamanha precisão e angustia se instalem às criaturas de seu convívio, não! Nem que por brincadeira! Sem mais pensar, começou a escrever ao verso da folha, assumindo todo e qualquer risco:
"- Isadora, escrevo-te também talvez em protesto. Muito preocupa-me a realidade em que vives, e considerar que um dia as coisas serão frívolas e estéreis dessa maneira faz-me implorar pela sua reação em contrapartida. Faça o que te digo: ame! Ame a Deus, este amor fluirá ao teu próximo, e transbordara a tempo de permear tudo o que você tocar. Tuas atividades quotidianas serão feitas com primor que é contrário à pressa. E as tuas mãos, ao adornarem batentes e sovarem bodós para as criancinhas, serão inspiração às mãos frias e infrutíferas da tua era. Cultiva,Isadora, teu amor; ordena as tuas paixões velozes. O amor é lento e constante. Ama a Deus e ele te cuidará aos detalhes."