O JULGAMENTO DE CARLINHOS

Havia um rapaz morto no chão. Ao redor, um monte de curiosos. Um dos policiais, de semblante carregado, segurava na mão uma pequena faca, pouco maior que um canivete, envolta em uma sacola de plástico. Todos olhavam o cadáver com um certo mal-estar. Dezesseis, dezessete, talvez dezoito e poucos anos, não mais. As informações eram mínimas, sabia-se apenas que se tratava de um jovem negro, raquítico, um tal de Carlinhos que mesmo manco de uma perna vivia causando problemas na região com seus pequenos furtos. As vestes surradas denunciavam que era mais um morador de rua, um viciado como vários que perambulavam pelas ruas próximas da rodoviária da cidade. Porém, nada disso importava mais. Estava morto e pronto.

No relatório pericial, emitido mais tarde, constou que o tiro, embora disparado nas costas, penetrara pela frente, bem no peito. Estrito cumprimento do dever legal, resistência injustificada à prisão, etc., tudo devidamente descrito no Boletim de Ocorrência registrado na competente Delegacia de Polícia Civil. Mais um Inquérito em breve concluído, e pronto para o arquivo.

Um grupo de evangélicos que passava bem na hora do ocorrido se prontificou a testemunhar os fatos, tudo conforme exige a lei. Apesar da excitação, do nervosismo, estavam todos convictos:

- Tá na bíblia, os ímpios perecerão!

- Ladrão tem que morrer mesmo!

- Somente os escolhidos habitarão a terra!

- A pátria eleita pelo Senhor pertence aos bons!

O corpo continuava lá. O sangue vermelho escuro brotado no nariz, na boca e nos ouvidos. Os olhos arregalados, quase saltando das órbitas. Os policiais até se distraiam uns com os outros com pilhérias: "O Décimo primeiro batalhão não perdoa! Bateu de frente, perdeu!"

Os transeuntes não se enojavam. Era mais um apenas. Um piolho que infestava, que coçava, que devia ser eliminado. Nenhuma falta ia fazer. Um alívio até para a família, isso se um traste daquele tivesse uma.

As pessoas já se acotovelavam para ver de bem perto o rosto do infeliz. A maioria aprovava aquela morte legal, justa e bem mosaica. Cidadãos de bem, repentinamente guindados à especialistas no assunto, revezavam-se nas suas sentenças:

- Se estivesse trabalhando não morria!

- Não tenho dó, a gente trabalha duro para esses demônios nos roubarem todos os dias!

- Fala para o pessoal dos Direitos Humanos vir tirar esse lixo agora!

- Vai olhar a ficha desse unzinho aí para vê!

- Esse aí não fuma mais pedra, não rouba, não mata, não “estrupa” mais!

- Nunca mais vai votar em comunista!

- A polícia tá certa, se fosse gente de bem não estaria nessa vida!

Enquanto isso o corpo continuava lá. Após, removido, não identificado, sepultado, esquecido.

Adolfo Kaleb
Enviado por Adolfo Kaleb em 05/02/2024
Reeditado em 13/02/2024
Código do texto: T7992637
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