Assaltos em ônibus
O conto “O Ladrão”, do escritor Mário de Andrade, é um clássico da literatura porque, entre outras coisas, descreve com precisão como era o ladrão brasileiro na primeira metade do século XX. Não o ladrão de colarinho branco, mas o ladrão que surge das classes mais baixas. A história conta como a ação de um possível ladrão causou alvoroço em um bairro operário de São Paulo. Começa com um único morador correndo pela rua, “pouco mais da meia-noite", gritando “pega!”. Até o fim do conto, um monte de gente está envolvida na caça ao ladrão e uma sequência de eventos ocorre. O curioso é a ambiguidade do conto: ninguém sabe se o ladrão realmente existe.
Assim tinha que ser o ladrão: sorrateiro, discreto, com “perna comprida e muita malícia”, como diz Chico Buarque. É o sujeito que entra, furta, até samba na casa da vítima, mas sai sem quase ninguém notar.
No Brasil do século XXI, o ladrão é bastante diferente.
Por exemplo, dia desses eu estava num ônibus a caminho do trabalho. O veículo estava tão lotado que havia pessoas, eu entre elas, “traseirando” (quando o passageiro viaja na parte de trás do ônibus, anterior à catraca). No Comércio, um bairro de Salvador, algumas pessoas desceram. E entraram dois rapazes. Desconfiei deles porque estavam olhando muito os passageiros e, principalmente, o cobrador. O comportamento deles, em comparação com os demais passageiros, era atípico. Não fiquei nem cinco minutos a mais na traseira. Paguei e passei pela catraca. Um pouco mais à frente, no bairro da Calçada, só escutei uma muvuca no fundo do ônibus.
Uma mulher grita:
- Ele deu uma facada no cobrador!
Os dois rapazes assaltaram o cobrador. Um dos criminosos deu uma facada no braço dele, que por sorte pegou “raspando”, o suficiente para ele soltar o bolo de dinheiro. Também levaram celulares de umas quatro pessoas que estavam no fundo do ônibus.
Alguém seria maluco de ir atrás dos ladrões quando um deles está armado com um facão? A discrição do assaltante é apenas para se infiltrar entre os passageiros, depois ele se revela na frente de todos, ameaça, agride, faz exigências. Tudo isso diante das câmeras do ônibus; ele não quer nem saber.
Ao longo das décadas, o tráfico internacional de drogas, um dos principais catalisadores da violência no Brasil, se fortaleceu assustadoramente. O acesso ao armamento ilegal ficou mais fácil, assim como as próprias armas ficaram mais sofisticadas e letais. O ladrão no conto de Mário precisa ser sorrateiro e discreto porque ele provavelmente roubou sem o uso da força (a linguagem jurídica atual diria que ele “furtou”, não que “roubou”). Ele precisava de “perna comprida” porque, em tese, estava de igual para igual com a vítima. Ele não se arriscaria, pois havia boas chances de ele se dar mal.
O ladrão de hoje possui arma de fogo, o que dá a ele uma certa vantagem sobre as suas vítimas. Ele tem tanta confiança nisso que muitas vezes assalta várias pessoas ao mesmo tempo.
Imagine que você esteja num ônibus lotado em Salvador. É bem possível que um, dois ou três bandidos, armados com revólveres, entrem no transporte público e intimidem todo mundo ali.
- Bora, rebanho de desgraças! Bora, todo mundo jogando carteira, celular, relógio, corrente de ouro, bala de canela…
Alguns são até educados.
- Não quero machucar ninguém aqui! Meu parça vai passar com um saco onde vocês jogarão tudo de valor que vocês têm. Peço que colaborem.
Depois de encher os sacos, um dos bandidos diz:
- Obrigado pela colaboração. Uma boa viagem!
As vítimas certamente sentem vontade de moer o cara na porrada, mas ninguém quer correr riscos de levar um tiro. Ninguém vai gritar “pega!” e incitar uma perseguição contra os chamados “meliantes”.
Alguns são tão confiantes que se sentem à vontade para conversar com potenciais vítimas. Outro dia, eu estava indo para o trabalho quando sentou um homem do meu lado. Desta vez o ônibus estava um pouco vazio.
- Esse ônibus passa na Federação?
- Sim.
Uns três minutos depois, ele diz:
- Você é de onde?
- Cosme de Farias!
Ele fica quieto.
- Você tem celular aí?
- Não! - eu menti. O celular estava dentro da mochila.
Mais uns dois minutos em silêncio. Depois, ele diz:
- Eu estou com uma arma aqui, mas não vou usar.
Eu entrei em pânico, porém tentei manter a calma.
- Fique calmo, garoto. Não vou te fazer nada!
Isso aconteceu de manhã cedo.
Ele desceu dois pontos antes de mim. Mas eu fiquei estarrecido pelo resto do dia. Os ladrões de hoje são o oposto dos bandidos discretos e sorrateiros. Hoje, eles até “entrevistam” suas eventuais vítimas.