As pobres criaturas, a história roubada, e o futuro na borra de café.
Tomo café enquanto escrevo essa crônica, um com chocolate, amarguissimo, caro, que eu tive que por dois sachês pra ficar bebível sem careta.
É engraçado. Notei isso, as vezes consigo saber como estou só pelo jeito que escrevo. Se raivoso, as coisas vem entrecortadas, ásperas, pairantes. Se triste, vem tudo meio azul, lágrima, como se o texto quisesse se esconder, como se fosse a Emma Stone na cena em que ela cai, voa e nasce num vestido azul de lindo.
Espero ansioso pelo fim do café. Aprendi mais cedo, a borra, o pozinho que sobra, nos fala sempre algo sobre nosso futuro, tem a sua hermenêutica, é só saber enxergar.
A essa altura, o dia já vem longuíssimo, mesmo mal começando. Antes tomei sorvete, de morango açúcar com pedacinhos e cauda doce, quase enjôo. Retirei meu ingresso na bilheteria pro filme que veria mais tarde, sozinho. Roubei uma história, e tomei um susto.
SUSTO.
Não consegui ler o fim do café.
É minha amiga, estava passando, me dá um abraço. Por coincidência ia ver o mesmo filme, na mesma hora, vamos juntos. Fico feliz.
Estou "com fantasmas de memória." Enquanto via "Pobres criaturas" e as imagens estranhíssimas se dobravam na tela grande do cinema, a minha cabeça lembra de pessoas, de olhares, gestos e gosto sonho.
Me vi tentando engolir, entender o amor amante, choramingoso como o Duncan (Mark Ruffalo), me vi sendo um afável e passivo que nem Max (Ramy Youssef), e até odioso, de dar vários tiros no pé, acabar no fim sendo cabra, que nem o Alfie (Christopher Abbott), fui (ou quis ser), máquina, ingênuo, bobo, mágoa, lucidez, implacável, novidade, feroz, destemor, queda, tipo Bella (Emma Stone), e com certeza, o bizarro, estranho, excêntrico e hipnotizante, Godwin Baxter (Willem Dafoe)
Hoje é um meio termo eu acho, tudo vem pensado devagar, limpo, cinza, calmo, mas também sem forma.
Ultimamente sobram muitos nadas pra fazer, pra pensar, apesar das coisas estarem girando em absurdo, apesar de uma parte da minha família estar incerta, quebrada. Problemas.
Minha libertação corre longe de mim, me cubro nas histórias, surrupiando.
Estou numa livraria, uma de shopping, dessas com livros caríssimos ainda no plástico, imaculados. Uma sessão de Livros-coachs, livros que viraram séries, séries que viraram livros, livros que viraram livros, etc etc. Foi engraçado, apesar de não ter levado nada, sequestrei.
É assim:
Escolho o alvo, tomo cuidado de passar despercebido pelo gerente careca, vou até um dos cantos menos povoados da loja, e assim fico, lendo pela próxima hora, até dar o tempo de ver o filme, e então ir embora, abandono a vítima numa prateleira qualquer, sem remorso, sem pagar pelas páginas já lidas.
Talvez corram até mim, o gerente careca grite ofegante, alerte os seguranças, e então, um daqueles com rodinhas elétricas me alcance (correr não é meu forte), me atinja com um tazer, e me faça rir num fim de espasmos. Final feliz. Vai ser a minha diversão infantil. Aliás, a todo momento me aparecem umas situações assim absurdas, meio Yorgos Lanthimos das ideias, não há o que fazer, escrevo.
Meu azar é que, nunca, nem querendo, consigo me desperceber, camuflar. Pra quem nunca me viu, ando levando sempre comigo minha cadeira de rodas, (ou ela me levando, nunca sei) de um verde meio brilhante oliva...
Foco. Foco.
O gerente careca que falei, vem como um tubarão dócil, solícito, ansioso pelos meus gostos de leitura, querendo assim, quem sabe, vender. Vender.
Aqui uma lição pra a vida: Um vendedor nunca é seu amigo. NUNCA. Brincadeira, devo ter exagerado, mas não, não confie em vendedores.
Fui logo sorrindo e me fazendo sumir do gerente com um "Valeu camarada, qualquer coisa te chamo" e continuei, como um desses caras que a gente vê nos true crimes, examinando, espreitando, escolhendo a vítima perfeita.
SCI-FI, RELIGIÃO, MOTIVACIONAL, FINANÇAS, FANTASIA...
O que vai ser?
O que?
LITERATURA ESTRANGEIRA!
Uma coisa engraçada sobre categorias de livrarias, é que elas podem significar quase qualquer coisa, não há lógica. Philip K Dick e Sêneca podem estar ali, lado a lado, conversando. Ou será que tem, eu é que não sou afiado, holístico o suficiente pra enxergar? (Por favor, quem for entendido em biblioteconomia, comente.)
Navegando pelo mar generalista que é o termo "Literatura estrangeira" Achei uma coisa que me agradou. Nas prateleiras baixas, já que, outro detalhe sobre mim; estou sempre baixinho, sentado. Meu xará, Garcia Marquez "Doze contos peregrinos"
Li o prefácio e ele dizendo que foi uma jornada colocar esse livro de pé. Refazia manuscritos, chegou a perder alguns, visitou Barcelona, Genebra, Roma, Paris, tudo pra ver se recordava as memórias que, segundo ele, " Estavam rarefeitas por uma inversão assombrosa : as recordações reais me pareciam fantasmas da memória"
Estou assim, fantasmas de memória. Lanço mão do meu plano. Se eu ficasse ali por uma hora, daria tempo de ir até a cafeteria, tomar um capuccino mais caro do que deveria, e então ver pobres criaturas. Enfim me fujo do mundo
O conto dizia sobre um presidente exilado, já pela hora da morte, faz exames, está pobre, junta as economias pra pagar as despesas do hospital, tem uma superstição: lê a borra do café pra ter uma pistazinha do futuro, um resquício de vida.
O dia hoje foi bom, o filme foi bom, a companhia foi boa. Vou ler o meu futuro dá próxima vez, espero que seja um pouco de hoje.