A Clínica

Há uma clínica em Salvador, onde eu preciso ir a cada dois meses para pegar a receita de um remédio para tratar do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). É a receita amarela. A clínica fica localizada em um shopping na Pituba, bairro considerado nobre em Salvador. Mais recentemente, estive por lá num dia de sábado. É necessário marcar horário para ser atendido e torcer para o médico ou qualquer outro especialista na área de saúde ter agenda disponível.

Marquei para 9h de sábado. Na teoria, era para eu ser atendido nesse horário. Só na teoria. Na prática, a sua paciência é testada para fora dos limites. Antes mesmo de ser atendido na recepção (a primeira coisa que você precisa fazer ao chegar na clínica é dar sua carteira de identidade na recepção), é possível perceber se você vai precisar ser muito paciente. Basta observar o espaço onde estão as cadeiras de espera. Se estiverem quase todas ocupadas, pode se preparar para mofar.

Cheguei na clínica às 8h50. Sento próximo a um senhor, que diz estar ali há mais de uma hora.

“Essa clínica é muito desorganizada”, ele diz. “Era para eu ser atendido às oito da manhã. Passou das nove e ainda estou aqui!”

“Olha, normalmente é recomendável que você chegue mais cedo do que a hora marcada”, respondo. “Mas isso é apenas em clínicas normais. Aqui eu costumo recomendar que as pessoas cheguem mais tarde do que a hora marcada.”

O velho gargalha.

E continua gargalhando. Começo a ficar preocupado. Psiquiatria é uma das especialidades na clínica.

Na clínica tem uma TV. A barbárie entretem os pacientes (nos dois sentidos). Uma senhora estava conversando com uma mulher mais jovem. Ela ouve a TV: “… foi baleado enquanto dirigia…”.

“Baleado!?”, ela interrompe a moça com quem conversa. “Se for bandido, tem que balear mesmo!”

Um homem sentado na cadeira de trás balança a cabeça positivamente para ela.

O noticiário estava informando sobre a morte de Tawfic Abdel Jabbar, palestino-americano vítima da violência na Cisjordânia. Quando a senhora escuta esse detalhe, muda de ideia.

A porta do consultório onde está a minha médica abre. Sai um homem. Muitos pacientes (nos dois sentidos)jogam uma avalanche de perguntas sobre ele. A dúvida é uma só: “qual foi o horário marcado?”

Ele responde e diz que foi atendido uma hora e meia depois. Seria o tempo de espera na teoria. Vou ser atendido às 10h30.

Na teoria.

O tempo de espera pode aumentar ou diminuir. Permaneceria constante se a duração da consulta de cada um dos clientes fosse rigorosamente idêntica. Mas evidente que não é. Alguns levarão mais ou menos tempo.

9h40 da manhã. O senhor que reclamou da desorganização da clínica foi chamado para atendimento. As pessoas o abraçam, o parabenizam. “Ele foi chamado”, diz outra paciente aos prantos. “Se ele foi, também seremos!”, diz um paciente otimista emocionado. Ele fica vinte minutos dentro da sala da médica. Ao sair, avisa às atendentes da recepção: “nunca mais ponho os pés nessa m…!”

10h da manhã. A barbárie prossegue na TV: polícia baiana acusada de matar três jovens inocentes. Em vez de dar detalhes desse caso, que é mais um episódio da violência fora de controle em Salvador, o repórter elogia a polícia. Ele entende que precisa afagar antes de criticar.

Enquanto isso, um homem começa a discutir na recepção.

“Isso é um absurdo! Eu estou aqui há quase duas horas!”

“Só tem duas pessoas na sua frente, senhor. Acalme-se!”, diz a atendente.

“Me acalmar porcaria nenhuma! Não recomendo essa sua clínica nem para meus piores inimigos!”

Ao meu lado, uma mulher que chegou depois de mim diz:

“Toda vez que eu venho aqui acontece isso.”

“Digo o mesmo”, respondo.

“Isso ainda vai causar quebra-pau aqui dentro. Espero não estar aqui nesse dia”.

“Só não aconteceu ainda porque todo mundo está medicado”, eu disse.

A moça não ri.

E continua sem rir. Começo a ficar preocupado.

“Pensei que a piada tinha sido boa”

“E foi. Mas efeitos colaterais mexem no meu humor”, ela responde.

10h40 da manhã. Depois de 38 minutos elogiando a polícia, o repórter finalmente vai falar da violência policial que vitimou três jovens. Mas quando ele começa a falar, o apresentador anuncia que o programa está acabando. Ficamos sem saber os pormenores do crime.

11h30 da manhã. Duas horas e meia depois do horário que marquei, fui chamado pela médica. As poucas pessoas que ainda restavam na clínica me abraçaram e me aplaudiram. Disseram que eu era um guerreiro. Entro na sala.

“Bom dia.”

“Bom dia.”

A médica olha meu prontuário no computador.

“Então, você toma remédio para déficit de atenção, não é?”

“Isso.”

Ela começa a passar o olho na mesa. Liga para a recepção. Olha dentro da bolsa. E me diz:

“Estou sem a receita amarela!”

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 02/02/2024
Reeditado em 03/02/2024
Código do texto: T7990629
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