UMA ILHA GRANDE E ESPECIALMENTE VERDE

Vivíamos aquele final da primeira metade da década de setenta, sob tutela de uma ditadura, que ainda não demonstrava a menor vontade de largar o osso, se lambuzando com tudo que o poder pode proporcionar aos gananciosos.

A polícia militar por sua vez, abusava de suas obrigações constitucionais, que limitava suas ações ao policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Em outras palavras, ela devia preocupa-se apenas com os atos ilícitos em andamento ou que acabaram de acontecer, mas não era bem assim que agia.

A convite do Clélio, amigo de turma na faculdade, fomos passar uns dias na Ilha Grande. Naquela época ainda funcionava a ligação pelo modo ferroviário. A viagem começava então na icônica estação Central do Brasil e depois de chacoalhar por pelo menos uma hora sobre trilhos, se chagava a humilde estação Santa Cruz, a última eletrificada, onde então se fazia a troca de composição.

Descíamos dos pesados e numerosos vagões de ferro, para embarcar no acanhado e encantador “Macaquinho”, uma composição toda de madeira, pintada na cor ocre e tracionada por uma “Maria Fumaça”. Esse ramal era chamado de circular, pois a linha fazia uma curva em volta do prédio do antigo Matadouro de Santa Cruz, ao lado da estação para retornar à estação homônima

Com seu traçado em ziguezaguear pelo recortado litoral da baía de Sepetiba, onde um belo contraste entre o transparente azul do mar e o verde tapete das encostas da Serra do Mar, lembrando em muito, o traçado percorrido por trens no litoral do mediterrâneo europeu.

Chegando a Mangaratiba, agora era necessário caminhar logo para o porto, a tempo de pegar a barcaça que parte em direção à enseada do Abraão. Esse trajeto era sem dúvida, a parte mais complicada da viagem, pois a embarcação ao navegar em paralela ao litoral recebia de lado o balanço do mar, mesmo estando em águas a princípio fechadas. Portanto, ver pessoas enjoadas, fazia parte do pacote dessa viagem.

Em nosso desembarque na ilha, uma viatura da polícia penitenciária nos aguardava, para assim agilizar nosso trajeto até a casa do tio do Clélio, um dos responsáveis pelo gerenciamento do então presídio de segurança.

Em função do cargo do tio, tínhamos a nossa disposição um veículo para utilizar na única estrada da ilha, que ligava a enseada do Abraão à praia de Dois Rios. E também uma lanchinha também oficial, para conhecer um pouco mais os intermináveis contornos da ilha.

O Abraão de então não tinha a diversidade de pousadas e serviços hoje disponíveis, e claro, muito menos gente circulando por praias e trilhas, se convivia com o perigo real da fuga de fugitivos ainda não resgatado, que conseguiam durante tempo indefinido sobreviver naquela fechada Mata atlântica, que ocupa a maior parte da ilha.

Foi logo após o jantar, enquanto bebericávamos um licor, que o tio dele resolveu nos confidenciar seu passatempo predileto. Com uma tranquilidade absurda, ele começou o relato de suas façanhas na ilha.

Vale aqui lembrar, que na sua concepção, o vocábulo preso perdera há muito tempo sua conotação humana, se associando sua trajetória a de um animal perigoso, que guardas os doutrinavam para se comportarem como escravos, e claro, se ganhassem a confiança da corporação, poderiam inclusive fazer trabalhos domésticos na residência da família dos policiais. Esse era o topo da carreira que um preso poderia almejar na ilha.

Todos os serviços de manutenção do presídio, alimentação de guardas e detentos faziam parte da rotina daqueles que cumpriam pena. Para rebeldes, a polícia tinha uma solução radical, que denominavam como “caça a raposa”. Em um dado momento, facilitavam a fuga desse sujeito que desrespeitara alguma regra. Para ficar uma caçada mais emocionante, eles preferiam sempre realizá-la à noite.

Davam pelo menos uma hora para que o coitado se embrenhasse na floresta e partiam com cães farejadores, lanternas potentes e armas para procurar a raposa. Todos tinham o prazer sádico de acompanhar os passos do preso, até chegar bem perto e fazer a execução.

No dia seguinte, se espalhava a notícia da fuga, e logo em seguida da resistência a prisão, com sua consequente morte. E tudo permanecia como dantes no quartel de Abrantes.

Como a população da ilha sabia dessas execuções sumárias, essa notícia rapidamente chegava ao continente, e a represália era do conhecimento de todos policiais do sistema carcerário, que corriam sério risco ao desembarcar em Mangaratiba ou no porto de Angra dos Reis.

No final das contas, tanto os presos, como policiais ficavam reféns dessa grande e especialmente verde ilha do litoral sul fluminense.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 02/02/2024
Código do texto: T7990546
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