Entre Sem Bater - O Guardião
Juvenal disse:
"... sed quis custodiet ipsos custodes?" (1)
O Juvenal não confiava na esposa e nem no guardião do guardião. Daí veio uma história que está ficando séria nos dias atuais. Para o Juvenal as opções eram muitas, e nenhuma delas era desesperadora como nos dias de hoje. Não é possível confiar em ninguém e as pessoas nos chamam de paranoicos. Este povo ainda não entendeu da missa metade.
O GUARDIÃO
Anteriormente, usei uma espécie de paráfrase para o pensamento e frase cuja criação recai para Juvenal. A figura do guardião original teve uma substituição, necessária, para vigilantes, mas a ideia era a mesma de dois milênios atrás.
Quis custodiet ipsos custodes?
O enredo pode parecer complexo, mas é fácil demais para entender e traçar muitas analogias. Atualmente, estamos vivenciando o noticiário sobre uma certa ferramenta de Estado como um guardião de pessoas. Quem vigia aqueles que usam a tecnologia para vigiar os outros.
O poema, com muita polêmica sobre origem e traduções era mais ou menos assim...
... Conheço o plano que meus amigos sempre me aconselham a adotar:
"Aperte-a, restrinja-a!" Mas quem pode vigiar
os vigias? Eles ficam calados sobre os segredos da mulher e a recebem como pagamento; todo mundo silencia.
Oxoniensis (29-33)
Os amigos(?) de Juvenal o aconselhavam a cuidar da esposa para não levar bola nas costas. Ele não confiava na mulher e nem no guardião que vigiava a mulher. História antiga, que repete-se milhares de vezes por dia, e os caras agora matam a mulher para resolver o problema. Não querem nem dar a chance para um guardião eunuco.
QUEM VIGIA O VIGIA?
No turbilhão da era digital, a frase de Juvenal, "Quis custodiet ipsos custodes?" (Quem vigia os vigias?), ressurge com uma força inédita. Desse modo, fatos recentes alimentam debates e polarização sobre o poder do Estado em ter acesso aos dados das pessoas. Por isso, a ameaça iminente que as modernas tecnologias ameaçam a privacidade individual é real.
Certamente, o que antes era ficção nos tempos analógicos agora se tornou uma dura realidade, sem um guardião pra chamar de meu. Estamos, sem dúvida, à mercê de qualquer um que controle as ferramentas tecnológicas disponíveis, inclusive déspotas criminosos.
O advento da era digital trouxe consigo uma explosão de informações e contrainformação, alimentando o exercício da vigilância em larga escala. Se antes a figura do araponga tinha a possibilidade de vigilância de um guardião, agora nem isso para o povo. Anteriormente, as investigações obscuras eram lentas e analógicas, hoje a ameaça à privacidade é ampla, ágil e 24x7.
Enfim, as modernas tecnologias permitem que o Estado e até criminosos acessem muito mais do que nossas informações pessoais. Surpreendentemente, podem fazer ilações e até fake news a partir de dados reais. Podem obter nossa localização geográfica em tempo real e o conteúdo das mensagens que trocamos.
Perdemos !
AMEAÇA VS. PROTEÇÃO
O debate em torno desse tema é complexo e se contratamos um guardião (vigia) precisamos nos preocupar em quem vai vigiá-lo. Paranoia pouca é bobagem, e depois dizem que eu é que não sou normal.
De um lado, há argumentos que defendem a necessidade de uma vigilância estatal robusta em nome da segurança pública. O Estado, argumentam outros, deve ter meios eficazes para combater crimes, investigar atividades suspeitas e proteger os cidadãos.
Mas o estado parece que tem ferramentas que não conhecemos e que não divulgam como tem seu uso diuturno. As tecnologias modernas, como câmeras de vigilância, reconhecimento facial e monitoramento de comunicações, estão em nosso dia-a-dia.
Surpreendentemente, há alguns anos os estúdios de Hollywood produzem séries e filmes sobre o tema. Já escrevi sobre a produção "Privacidade Hackeada"(2). Inquestionavelmente, os retornos que recebi indicam que as pessoas viram a produção somente como diversão. Uma outra série ("Person of Interest(*) - 2011-2016) apresenta um mundo, a princípio, distópico, mas que está nas manchetes da mídia.
Por outro lado, os defensores da privacidade ressaltam os riscos inerentes à coleta indiscriminada de dados. A possibilidade de abusos por parte do Estado, vazamentos de informações sensíveis e a criação de um estado de vigilância constante geram preocupações legítimas.
Afinal, quem garante que as instituições responsáveis pela vigilância não se tornem elas mesmas agentes de opressão?
NEM A PAU, JUVENAL!
Certamente, é impossível saber que o criador da campanha publicitária conhecia o Juvenal satírico. Entretanto, a gíria "nem a pau", com o nome Juvenal, virou um bordão clássico. Noves fora os trocadilhos possíveis do dilema de Juvenal e o guardião da sua esposa, parece uma piada, mas não é.
O paradigma da vigilância também se desloca para o âmbito das organizações não-governamentais. Por meio de aplicativos, redes sociais e dispositivos inteligentes as plataformas, coletam uma quantidade massiva de dados dos usuários. A linha que separa a esfera pública da privada torna-se tênue. A pergunta de Juvenal ganha nova dimensão: quem vigia as corporações que acumulam nosso rastro digital?
Com toda a certeza, não existe nenhum guardião disposto a nos ajudar contra a sede insana deste povo pelos nossos dados.
Se continuar desse jeito, eu diria que nem a pau, Juvenal, dá para não ter um guardião vigiando o vigia.
LGPD E PRIVACIDADE
Na arena digital, a privacidade é uma mercadoria valiosa, em negociação frequente na troca de conveniência ou serviços, aparentemente, exclusivos. A conscientização sobre os riscos e a necessidade de regulações que protejam os direitos individuais torna-se urgente.
Quem define os limites da vigilância estatal e corporativa?
Quais são os mecanismos de prestação de contas quando ocorrem abusos?
A criação de uma LGPD, de uma agência de governo para isso é quase sem compreensão e aplicação, uma lei que não pega(3).
O debate não se limita apenas ao âmbito nacional, pois as tecnologias ultrapassam fronteiras, colocando desafios globais. A cooperação internacional torna-se crucial para estabelecer padrões éticos e jurídicos que protejam os direitos fundamentais.
Enfim, o equilíbrio delicado entre a necessidade de segurança e a preservação da privacidade é um desafio complexo. Clamar por uma reflexão profunda da sociedade é completamente inútil. A frase de Juvenal repete-se, em meio às maravilhas tecnológicas e inovação sem limites e sem controle. A proteção da liberdade e da privacidade individual deve ser uma prioridade constante de cada um.
Quem vigia os vigias? A resposta a essa pergunta moldará o futuro de nossa sociedade digital.
Toc ... toc ... toc ... Juvenal, aceita que dói menos e "Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) Na série, um desenvolvedor resolve ser o justiceiro a seu critério. E recebe coordenadas das pessoas do interesse de um software de IA.
(1) "Entre sem bater - Juvenal - O Guardião" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/02/02/entre-sem-bater-juvenal-o-guardiao/
(2) "Privacidade Hackeada" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2019/08/01/privacidade-hackeada/
(3) "Show me the Code - Ou a LGPD ´não pega`" em https://capitaldigital.com.br/show-me-the-code-ou-a-lgpd-nao-pega/