*O Velório*
A veraneia estação fazia o calor recrudescer. Sob uma frondosa árvore, assentado se encontrava um senhor que aparentava estar na Faixa Etária da Melhor Idade (Humpf). Noto que as suas enrugadas mãos pousavam sobre os joelhos, enquanto os seus olhos buscavam – talvez nem mesmo sabendo o que – algo que o fizesse sair daqueles letárgicos pensamentos. Retirando do bolso um lenço, ele o leva ao rosto tentando enxugar as cascateantes e abundantes lágrimas.
Compadecido, dele me aproximo, estendo-lhe a mão em cumprimento e o saúdo com os votos de boa tarde!
-Boa tarde! – afetuosamente cumprimento-o! Posso ajudar o senhor! – indago, demonstrando estar preocupado!
-Meu jovem (soluços, uma pequena pausa) estou triste. Acabei de perder meu melhor e fidelíssimo amigo! Estou indo agora para o velório! – diz-me com a voz embargada pelas abundantes lágrimas!
Compadecido, ofereço-lhe o meu ombro amigo, enquanto digo-lhe algumas palavras de conforto com o fito de retirá-lo da letárgica situação. Pensando em dar-lhe melhor conforto, ofereço-me para acompanhá-lo.
-Obrigado! Quero, sim a sua ajuda, bem como, o seu acompanhamento! – dissera-me grato pela ajuda.
Ajudo-o a levantar-se e o encaminho até ao meu carro para, em seguida, dar início à nossa ida até o local do velório. Em lá chegando, noto que o ambiente estava quase que deserto. Nos castiçais as velas ardiam. As suas bailarinas chamas – devorando a parafina e o oxigênio – tremulavam ao sabor dos ventos como vadios lepidópteros na utópica e vã tentativa de iluminar o ambiente. Não havia necessidade: as “velas” incandescentes de luz neon já se incumbiam da tarefa. Às velas de parafina, portanto, cabiam a missão de iluminar o caminho do “espírito que habitava, até então, o corpo ora velado”.
Na fria lápide ele jazia. Sua enrugada e flácida derme demonstrava que o “espírito”, de há muito, dele se despedira. A um canto do necrotério uma linda mulher lamentava a falta já sentida do amigo que ora parte. Ela não só chorava, mas, e acima de tudo, lamentava e mantinha aquela postura de respeito ou saudades – não há como saber ao certo – do falecido velado! Talvez ambos fossem os motivos para a demonstração dos aparentes sentimentos da fanzoca!
O meu mais novo amigo, encontrado na praça, começa a narrativa das suas épicas aventuras vivenciadas pela dupla dinâmica, ora desfeita pela morte. Atento, ouço-o:
-Mesmo não sendo irmãos siameses (Sabe?), nascemos no mesmo dia e hora – unidos para sempre! Juntos, nós formávamos uma Dupla Infernal. Nem sempre fora assim. Por sermos, ainda, jovens, não sabíamos – nem dávamos conta, também – da exata importância dele para mim, nem a da minha para com ele. Quando, enfim, nos descobrimos, foi aquela festa. E a abundante festa era o que abundava. E por ser abundante, a Bunda era a mais reverenciada.
Às vezes era no mato, no rio – quando, então, íamos nadar – no banheiro e em qualquer lugar, travávamos uma desigual luta de cinco contra um e ele, por estar “enforcado”, perdia a lide! De nós dois, ele era o mais atrevido, assanhado e intrometido. Se as minhas narinas captassem os feromônios – cheiro bastante diferente dos já costumeiros, se espargindo pelo ar – isso seria o bastante para despertar os seus animalescos sentidos. E ele logo se assanhava todo, dando o ‘ar da sua graça’. Bem menor que eu, ele tinha que levantar a cabeça, para comunicar-se comigo no seu mutismo linguajar. Sim, o meu amiguinho era (Esse pretérito verbal (‘Era’) a mim entristece sobremaneira, diga-se!) excepcional por ser ceguíssimo, mudíssimo e surdíssimo! Mas, e mesmo assim, isso não nos impedia de sermos felizes e “safados brincalhões”.
Duro? Bem... aí era duro mesmo contê-lo. Assim, e quando sói acontece – e disso bem me lembro – travávamos uma desigual luta dos Cinco Contra Um. E o Um – por estar “enforcado” – perdia a lide! Era preciso ‘enforcá-lo’, para que ele se aquietasse, tomasse jeito, tivesse modos e quedasse a cabeçorra, para se acalmar. Depois, arfantes – e estando ele todo sujinho, babado e com a cara mais deslavada pela falta de vergonha – ria ele, ria eu, ressorríamos nós com as nossas travessuras de arteiros e safados moleques.
(Abro um parêntese para fazer coro com o riso que, agora, se abria nas faces do meu novo amigo. Mas sigamos ouvindo a sua narrativa.):
Assim vivemos, vivenciando épicas aventuras. Eu e Ele. Ele e Eu. Éramos – como antanho diziam: “Como carne com a unha”, sempre e fielmente juntos! Éramos inseparáveis amigos!
Agora, a tristeza invade minha alma por vê-lo, assim, morto, encolhido, frio e estirado numa lápide, tendo ao seu lado apenas nós: eu, ele e os seus dois únicos e inseparáveis amigos de folguedos, agora, aquietados dentro de uma solitária sacola a balouçar ao sabor dos ventos.
Ouço um lamento – era o daquela linda mulher! O branco lenço se espalha pela sua dolorosa face ajuntando as lágrimas que se espalhavam. Um inevitável assuo com sua onomatopeia gritante, se fez presente. A secreção nasal apareceu dando trabalho ao lenço. E a linda mulher diz: - Tadinho (Snif!...), fomos tão (Soluços!...) felizes juntos! Olho-a de soslaio. Vejo algo parecido com um triste sorriso. Pergunto-a: - Por que somente você veio ao velório? - Ele foi – e bem sabe disso – o amor da minha vida! E mesmo sabendo que ele está morto, eu viverei para amá-lo sempre. (Abro um parêntese para dizer o óbvio ululante: - “Somente Sigmund Schlomo Freud explica”. E isso, vale dizer, é “soda”!)
As palavras da linda mulher fizeram a nós – eu, o velho, e os solitários e fiéis amigos do falecido que moram na sacola – um bem maior que a vida pode oferecer a um homem. De soslaio, olho para velho da praça que prossegue na sua narrativa:
Com tristeza, olho para o meu dileto amigo. Digo-lhe da minha dor por vê-lo partir. Queria – confesso-lhe – estar juntinho com você agora. Queria poder dizer-lhe – mesmo sabendo-o surdíssimo, mudíssimo e ceguíssimo – o quanto lhe sou grato por tantos prazeres que, juntos, desfrutamos, vivenciamos. Resta-me, meu caro amigo, despedir-me de você. Mas você foi covarde para comigo. Você não tinha o direito de deixar-me, assim, sofrendo esta solidão causada pelas saudades que você deixou. Eu – se fosse possível – gostaria de ter-me ido antes que você. Contudo, sei que você, sem mim, não teria condições de sobreviver – ninguém o amou como eu. Portanto, ficarei aqui – viu? Esperando um dia reencontrá-lo lá no alto, no paraíso para, juntos, promovermos todas aquelas nossas farras que fazíamos nesta terra.
Até breve meu ilustre ceguíssimo, surdíssimo, mudíssimo e gostosíssimo amigo: o meu Amado Pinto!
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