Folhetos
Está complicado andar por Salvador sem topar com alguém distribuindo folhetos pela rua. Como se trata de uma cidade violenta, em um país violento, onde se mata por bobagens, você acaba ficando com receio de não estender a mão e pegar um desses papelzinhos.
Dia desses, eu e um conhecido estávamos indo ao local que ele indicou. Fomos andando, passamos pela rua direta de Cosme de Farias, pelo Largo dos Paranhos, Pitangueiras, passamos do lado de fora da estação Brotas do metrô. Pouco depois do viaduto, passamos pela D. João VI, rua de Brotas, onde um cara distribuía folhetos com anúncio de uma loja. Algumas pessoas pegavam; outras, não. Eu e o conhecido passamos por ele. Recusei-me a pegar. Escutei ele dizer: “vou gravar sua cara, safado”. Eu estava a uns três metros de distância dele quando ouvi.
Fui aconselhado por amigos a não passar pela aquela área por um bom tempo.
- Você não sabe do que ele pode ser capaz. - me disse um amigo. - Ele pode conhecer algum traficante, ir na 'boca' e pegar uma pistola emprestada.
- Conheço gente que morreu por causa de passarinho, por causa de pisão no pé, por causa de mal-encarada. Espero não conhecer gente que morreu porque não pegou um bendito folder na rua. - me disse outro amigo. - Então te aconselho a ficar longe desse lugar aí.
O que fazer? Quer dizer que agora eu vou ter pegar qualquer folheto que me for oferecido na rua sob risco de ser ameaçado ou até mesmo morto caso recuse? A princípio, fiz isso. Fui pegando cada folheto que me ofereciam. Até folhetos com anúncios de loja de calcinha, de propaganda picareta, de agiotas, de mensagens bíblicas etc. Estava ficando insuportável. Chegava em casa e havia um bolo desses papéis dentro do meu bolso. Comecei a levar mochila só para colocar a papelada de anúncios dentro.
“Eu amo a rua”, escreveu Paulo Barreto, o João do Rio. Ele disse isso porque nunca andou pelas ruas de Salvador onde há entregadores de folhetos em cada esquina. Ele também escreveu que “a rua tem alma”. Em Salvador, tem alma de vendilhão, pois qual a finalidade dos folhetos senão tentar nos convencer a comprar coisas?
De qualquer modo, João do Rio me inspirou. A definição de “flanar”, segundo ele, é “a distinção de perambular com inteligência”. A meu ver, inteligência também é se adaptar. Flanar, aqui em Salvador, também é andar e desviar inteligentemente dos distribuidores de folhetos. É procurar atravessar a pista na hora certa. É saber regular a velocidade do andar para ajustar ao pedestre que está um pouco à sua frente, para que ele possa pegar o folheto, e não você. Essa técnica funciona nas ruas em que há apenas um entregador de folhetos. Pois esse entregador nunca conseguiria entregar folhetos para duas pessoas que passam ao mesmo tempo, a não ser que o cara tenha uma habilidade inaudita. Essa técnica é completamente inútil na avenida Sete, onde há entregador de folhetos por todos os lados. Outro dia conversei com um cara que vendia churros por ali e ele me disse:
- Tenho medo de ir para o banheiro aqui na avenida Sete e acabar encontrando um entregador de folheto lá dentro.
Eu voltei a passar por Brotas, pelo exato local onde o cara disse que ia “gravar minha cara”. Não vi mais ele por lá. Perguntei ao dono de um estabelecimento por onde andava o rapaz. Ele me revelou que esse entregador foi morto pela polícia durante um tiroteio no fim de linha de Cosme de Farias. Mas ele não sabia me dizer se o cara morto era inocente ou se tinha envolvimento com o tráfico.
Fiquei estarrecido. Talvez eu realmente tivesse sido ameaçado.