NO ÍNTIMO DO DIA

O dia, mais um dia, amanhece, e eu estou dentro dele.

Os ruídos miúdos da casa e o barulho das ruas acordadas, fazem-me saber que ainda estou vivo.

Saio dos sonhos noturnos, sem me lembrar deles, para buscar meus desejos diurnos. Às vezes me pergunto, para onde vão os sonhos sonhados, deixados nas fronhas amarrotadas dos travesseiros? Se um dia eu não mais amanhecer, quero ir para o cemitério dos meus sonhos evaporados.

Mas o dia continua, e ele tem a pressa dos relógios. Caminhar no interior de um dia é sempre para mim desafio, espanto, assombro e deslumbramento. Não há dia em que não sinta o pulsar da vida além das artérias.

Nenhum dia é igual ao outro. Os dias só são iguais para a Terra, o Sol e o Universo. Se um dia parecer como um dia já apareceu, tem alguma coisa de errado. Porém, os dias estão sempre certos: amanhecem, entardecem e anoitecem. Se algo não está pertinente ao incerto que a vida é, sou eu e minhas repetidas rotinas, que não me deixam enxergar o outro lado; cheirar o inesperado; saborear todos seus doces, azedos, amargos e salgados; escutar o até então inaudível e tatear pelos entremeios das invisíveis frestas do cotidiano.

Há dias que são azuis, como os dos sonetos de Carlos Pena Filho. Outros, verdes, violetas ou amarelos. Há dias rosados. Há dias acinzentados. Há dias até que passam em branco. Tem dias mais bordôs do que outros, alguns são amarelo-arroxeados, tendo dia que é tão preto que dele não se enxerga nada. Quando mais jovem gostava dos dias esquentados, vermelhos, amarelos e muitos alaranjados. Porém, o tempo dos agitos, dos açodamentos, das avidezes e dos afobamentos são tempos velozes e inquietos, impregnados de ansiedades, formigamentos, frenesins e sobressaltos. Eles hoje são os dias que em parte me fizeram, e que trago neste labiríntico amálgama chamado memória.

Faz dias que somam anos, que prefiro os dias beges, mesmo que sejam dias quentes, chuvosos, friorentos ou até mentolados. Não é fora de quem sou que vivo o dia. É no meu interior, às vezes confuso, às vezes sereno, outras vezes pacificado, que o dia lá fora se infiltra em mim, e aqui dentro é que ele se faz. O dia é o momento da vida. E é no agora, dos vários agoras do dia, que quero sorvê-lo sem a inquietação dos agoniados.

Como António Machado, vou passear pelo dia como se pisasse no mar. Das pegadas que deixo na superfície líquida das águas, vou trazendo a sensação molhada de que ela me dá.

Tenho pena dos distraídos e dos desatentos. Não sabem eles que a vida está no oxigênio que se respira, no passar vagaroso das nuvens, no pausar descansado do dia à tarde, no recolher do Sol ao seu quarto, e no acender das estrelas que o céu sem azul revela.

E quando este dia terminar, vou voltar pros meus sonhos esquecidos nos travesseiros – quem sabe algum deles ainda esteja lá.

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 30/01/2024
Reeditado em 30/01/2024
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