Respeite meus limites, Sr. Miró

Tarde de verão em 2017. Visitávamos um dos maiores e melhores museus do mundo. Percorrendo salas e salas, extasiado com as obras de variadas procedências, escolas, estilos e idades.

Uma breve introspeção, antes de seguirmos adiante. As seguidas visitas a museus, atento às informações sobre o que se expõe, sejam construídas como arte ou não, sobre as épocas em que foram executadas, sobre os artistas, além de enriquecer o modo de apreciarmos e nos deslumbrarmos com as criações, vamos sedimentando um reconhecimento temporal da evolu-ção da cultura, dos costumes, dos ambientes vividos, riquezas, dificuldades, conquistas e velocidade com que mudanças ocorriam. Muito do que ali está não foi executado como obra de arte, mas sim como meio de sobrevivência, de costumes e necessidades diárias.

Certa ocasião, em visita a uma excelente exposição de obras egípcias do tempo dos faraós, na FAAP, em São Paulo, chamou minha atenção não ser possível identificar, apenas mirando os sarcófagos, qual era mais antigo. Sendo completamente leigo neste tema, não consegui perceber diferença na técnica de execução, no tipo de material utilizado. Lendo as plaquetas vi que entre um e outro havia transcorrido trezentos, setecentos anos. Pareceu-me que as técnicas para tais execuções não se alteraram, significativamente, em todo o tempo dos faraós.

Diferentemente, da evolução mais recente da arte. Considera-se que o Realismo predominou de 1850 a 1900. Simplificadamente, no final do século XIX, embolou com o Impressionismo. Surgiram o Cubismo, o Surrealismo. De lá para cá, muitas outras correntes. Não sei onde estamos hoje. Arte Moderna, Arte Contemporânea? Tenho visto enorme diversidade.

Isto posto, voltemos ao nosso tour num dos maiores e melhores museus do mundo.

Realistas, impressionistas, cubistas, surrealistas, moedas, roupas, armaduras, armas de guerra, máscaras, barcos, peças da pré-história. Muito da história estava representada.

Impera o silêncio, a contemplação, semblantes radiosos, visivelmente satisfeitos e se sentindo privilegiados de estarem frente a estas expressões culturais milenares, centenárias. Ao surgirem, estas correntes pós realismo, invariavelmente, foram rechaçadas pelo status quo da época. Levaram bom tempo para vingarem perante a sociedade.

Venho observando há algum tempo que as salas com obras modernas, contemporâneas não deixam ninguém indiferente. Reações diversas. Mais barulhentas. Risos, discussões em vozes não tão baixas, gargalhadas, às vezes. Mesmo assim, há os contemplativos, sérios. Parecem buscar o que passou na cabeça do artista, o que queria transmitir.

Frente a uma tela branca com um borrão que mais parecia o resultado do lançamento do conteúdo da caneca de solvente, deixado escorrer e secar, os ânimos estavam mais exaltados. Reprovação da maioria.

Neste momento, uma menina com cerca de sete a oito anos, saltitante, passava pelas obras, voltava-se para seus pais e dizia:

- Este, eu podia ter pintado.

Em frente à outra:

- Este, euuu nããão pinteeeei!- com o dedo indicador oscilando, gesto eloquente de desaprovação. E saia rindo, continuando suas contagiantes avaliações.

Em frente ao quadro do solvente, exclamou:

- Este, nãão pinteei.! O pintor também nããão!

Gargalhadas.

A arte moderna e contemporânea testa a tolerância das pessoas.

Cito Vergílio Ferreira, escritor português:

“Há o que tem limite e o que é sem limite. A arte é a forma perfeita da consciência destes opostos”. Para a menina, limite era fronteira mesmo.

Tenho os meus, mas uma certa tolerância quando ultrapassados. Algo relevante levou o artista a fazer aquilo. Embora Edmund Burke, filósofo irlandês, tenha avisado:

“Há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude.”

Ouvi o título deste texto em Barcelona, durante uma visita ao museu de Juan Miró, artista surrealista que se declarou favorável ao assassinato da pintura. Pregava que a arte não poderia retratar o que vemos, mas sim o que sai de nossa mente, abstrações. Mais ou menos isto. O visitante estava no terraço do museu, em frente a uma escultura do artista e, contrariado , pois não gostou nada do que via, soltou a frase título.

Fomos almoçar no próprio museu. Lá, uma daquelas coincidências que nos deslumbram. Encontramos o casal Roberto e Hideko, médico e artista plástica, habituados a museus e cultura em geral. Amigos de longa data. Não nos víamos há dois anos, mais ou menos.

Após breve atualizações de nossas vidas, relatei sobre o acima descrito. O diálogo, resumidamente, caminhou para algo como:

Limite. Raramente é definido de forma clara. Têm como parâmetros, o momento, o interesse, a cultura vigente.

Interessante é que concordamos que aqueles que impomos a nós mesmos podem ser ultrapassados com esforços redobrados, porque são definidos tendo como parâmetros nossos conforto, comodidade e segurança. Colocamos o sarrafo em nível mais baixo do que podemos efetivamente atingir. Aqueles que nos impõem são desafios. E quando estamos em posição de definir limites para o próximo, os parâmetros que usamos são a conveniência e a ocasião. Demos boas risadas com esta assertiva.

Por outro lado, disse Hideko, quando ouvimos- “Você ultrapassou meus limites!”, sabemos que ainda há tolerância.

Continuamos nos divertindo um bom tempo no almoço, sem nos preocupar com precisão ou assertividade, fazendo uma brincadeira tipo pergunta-resposta. Lembro-me de algumas.

Qual o limite da razão? A loucura, disse Hideko, informando que é frase de Drummond.

Da sensatez? Imprudência.

Da mágoa? O perdão.

Da dedicação? A realização.

Da vida? A morte.

Do limite? Vencê-lo.

Da inteligência? É elástico. Estique-o.

Do casal? Desobediência. Ops, não! Desrespeito, desatenção, falta de cumplicidade, falta de cooperação, antagonismo, impaciência...

Edson Gomiero
Enviado por Edson Gomiero em 29/01/2024
Reeditado em 01/02/2024
Código do texto: T7987612
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