A mesa
Pouco a pouco o apartamento começa a ficar desarrumado. O mesmo que é criteriosamente faxinado toda semana. Os inquilinos agora que tanto priorizam por organização e limpeza terão que se acostumar a bagunça externa do ambiente. Um dos poucos lugares que ainda podem ser minimamente controlados neste mundo. Mas enfim, chegou o momento do caos. Primeiro passo se desfazer de móveis e eletrodomésticos que não poderão carregar. Pois essa não é uma mudança qualquer de um bairro para outro ou até mesmo de uma cidade para outra. Estão indo para outro estado. Bem diferente e estranho a seus costumes. E simplesmente na maior cidade da América Latina, São Paulo. Provavelmente com os mais caros metros quadrados também. Talvez por isso o apartamento novo seja tão pequeno e apertado, comparado ao que estavam acostumados a viver. Mas a vida é feita de mudanças, e está era uma bem providencial. Com um toque quase divino, que conspirou para que enfim eles saíssem de Goiânia.
O primeiro a aparecer para buscar os objetos foi um primo que ia ajudar no desmonte de alguns móveis. Trouxe mulher e filho e vieram preparados para passar o dia. E lá foi Clarice para cozinha preparar comida. Irene (a esposa que veio acompanhar), fez uma menção gentil de ajudar, mas ela achou de bom grado recusar, já que os mesmos fariam um grande favor. Gabriel, a criança quase encapetada de outrora estava irreconhecível, perto da pré-adolescência e hipnotizado pela tela do celular. Aquele objeto parecia mesmo agora, diante daquela cena, ter mesmo o poder de sugar nossa alma. Não importa quantos estímulos externos acontecessem, seus olhos nem sequer piscavam. Adultos, por si só, já são seres estranhos e desinteressantes aos olhos infantis que buscam por novidade no mundo, mas diante de tanta informação e imagens provocadas pelo aparelho segurado com destreza por mãos ainda pequenas, tudo ficava ainda mais tedioso. Os homens, como sempre, pareciam se entender maravilhosamente bem. Com o futebol como seu tema de segurança. Clarice tentava buscar algo em comum com Irene. Ela falaria também maravilhosamente bem sobre o esquema tático do seu time, mas provavelmente não encontraria retorno. Sobre filhos, muitos tinham medo de falar com ela, acreditando ser um gatilho, para seus seis anos de tentativas frustradas de engravidar, e talvez fosse, de modo que até mesmo ela evitava o assunto, fazendo uma ou outra pergunta sobre Gabriel. Então terminaram falando sobre novelas e casa. Por fim a família visitante foi embora de barriga cheia, levando uma mesa e um guarda-roupa já desmontados.
No fim do dia Irene enviou para Clarice a mesa já montada e com uma toalha grande já posta, o que lhe tirou um pouco do eixo, ao mostrar novas possibilidades através de uma outra perspectiva de um mesmo objeto. A mesma mesa, com os mesmos defeitos, que inúmeras vezes ela reclamou e pediu tanto para o marido comprar outra, já que a mesma não tinha dinheiro. Que por vezes parecia um elefante branco, destoando dos outros objetos da sala, espremida entre a estante e a porta, parecendo sem função, já que ela nunca conseguiu convencer o marido a se livrar do hábito de comer no chão que ele trouxe da casa onde foi criado. Agora ali, perfeitamente disposta no ambiente. Uma cadeira em cada cabeceira e uma em cada lado e não duas de cada lado como era na sua casa. Meu Deus, era tão simples ter feito diferente! Pensou ela. Clarice parecia atordoada por nunca ter pensado naquela possibilidade. E a mesa agora parecia linda, na posse do outro. Um outro mais perspicaz e inventivo, um outro que valorizaria e cuidaria muito melhor daquela mesa, de uma forma que ela não soube. Que inveja teve, por um momento fantasiou a mesa de volta. Mas já era tarde. Naquela noite Clarice não pregou os olhos, porque talvez a mesa fosse somente um prelúdio de tudo que lhe escapava. Tudo que estava fora do lugar, torto, destoante. Que ela não sabia onde enfiar, como posicionar, encaixar, combinar. Que mesmo uma limpeza externa não adiantava nada, continuava tudo fora do lugar.
Era demais pensar nisso, não no ambiente externo, mas na sua vida. Quantas coisas fora do lugar, obsoletas, precisando de novas perspectivas e possibilidades. Não dando mais conta do que tudo isso poderia provocar, tomou um remédio para dormir. No dia seguinte tinha mais trabalho para fazer, mais objetos a serem doados, mais caixas para serem fechadas. E quem sabe a mudança para outro estado fosse suficiente para mudar a perspectiva de seus olhos, a anos acostumados aos mesmos posicionamentos. Engoliu o comprimido que mesmo com água pareceu arranhar um pouco a garganta. Colocou o copo na mesa de cabeceira ao lado direito. O marido ao lado esquerdo já roncando. Fechou os sonhos e adormeceu. Nesta mesma noite teve um sonho feliz, ela, o marido e a criança que ainda não existia jantando e conversando felizes à mesa.