CASTIGO DE ANHANGÁ

Era Anhangá entre os selvagens, o rei da caça, o caçador...

Assim, em versos, a minha mãe contava a lenda de anhangá. Índio tupi, valente guerreiro, caçador excepcional se tornou criminoso e foi castigado por Tupã.

Contam que num determinado dia, a mãe de Anhangá disse que estava com o pressentimento de que haveria uma desgraça, que Tupã castigaria o causador e que ele não fosse caçar, porque havia o que comer em quantidade bastante para toda a tribo.

Mas Anhangá, homem feito e destemido não deu ouvidos à ordem da sua mãe e foi caçar.

Passou o dia todo na mata, mas por ironia do destino, andou em círculos sem se afastar da tribo e sem encontrar nenhum animal.

Quando a noite estava chegando e as sombras cobriam tudo, a mãe de Anhangá saiu da oca para apanhar lenha e ele, ao notando o movimento e o som dos passos por dentro das moitas julgou ser um animal, com uma flecha certeira abateu a própria mãe. O castigo de Anhangá foi ser transformado em entidade maléfica.

Quando acontecia qualquer coisa desagradável comigo, minha mãe dizia = é o castigo de Anhangá...

Lembro-me bem de um desses castigos.

No pé da Ponte da Boa Vista, a monumental ponte de ferro, todas as tardes uma baiana devidamente caracterizada, armava seu tabuleiro forrado com toalhas brancas, impecavelmente limpas, e num fogãozinho de carvão, fritava os bolinhos, ao meu paladar, irresistíveis.

O cheiro marcante do azeite de dendê se espalhava desde a Praça Joaquim Nabuco até o outro lado do Capibaribe. Pernambucano não é muito chegado ao feroz ardor das tradicionais pimentas baianas, mas eu gosto de pimentas capazes de fazer o cabra chorar.

Numa dessas tardes em que fui comer os acarajés, a pimenta estava mais mansa do que as águas do Capibaribe em dias de maré morta, aí perguntei:

- Oh! Minha comadre, cadê aquela sua pimenta chôchôla?

- Tá quí, meu fio. E pegando o vidro de pimenta sob o tabuleiro, passou a ponta da colher na metade do bolinho.

- Pode botar a seu gosto.

Ela colocou a quantidade que julgou necessária e me entregou.

No primeiro bocado senti a explosão do Krakatoa por dentro de mim.

Engasgo, acesso de tosse, espirro, lágrimas e, se houvesse mais alguma coisa pronta por dentro na iminência de sair, teria saído ali mesmo.

- Meu fio qué uma água, um refrigerante?

Entre soluços respondi, - não minha comadre, eu quero é que arda muito para nunca mais eu duvidar da pimenta de ninguém...

E por dentro dos meus ouvidos, a voz da minha mãe dizia – é castigo de Anhangá.

CITAÇÃO

Anhangá = significa diabo em português.

Chôchôla = gíria, coisa insignificante.