Mistérios

Caminhava tão tranqüilo que o mundo parecia não existir.

Tinha lá suas razões, pelo menos no seu entender. Mas como nosso entendimento nem sempre corresponde à realidade, sem saber, calmo, ele continuava andando. Rua suja, bairro feio, poucas pessoas nas calçadas.

Pensava sem muita lógica nas coisas e fatos que o cercavam, alheio a tudo e a todos. O pensamento ia e vinha: como estaria ela? Bonita, sem dúvida. Quando o visse, seus olhos ficariam cheios daquele brilho que demonstra paixão. Olhos bonitos, parecendo que miravam alguma coisa mais adiante, e não só o que estava visível. Corpo pequeno e aconchegante, enchendo de prazer quem estivesse junto dele – privilégio que somente aquele homem de andar firme e sem pressa possuía.

Não estava preocupado com a hora. Quando se encontravam na rua, nunca um esperou pelo outro; não era só uma questão de relógio, mas de hora interna. Aliás, não estava preocupado com nada, o que nos caracteriza. Estamos ou não preocupados, este é o fato.

Algumas crianças faziam uma algazarra dos demônios, na mesma calçada. Quando passaram por ele, olharam curiosas, como acontece quando deparamos com alguém que parece não pertencer ao planeta. Nem moço, nem velho, concluíram aquelas pequenas, felizes e irrequietas cabeças. O seu olhar sim, era diferente. A pirralhada não podia concluir nem deduzir mais do que isto, nem interessava: foram adiante aqueles que, um dia também iriam ao encontro de alguém, desconhecendo que o céu estava claro, num tom azul profundo, tão profundo que era mesmo o Céu – Infinito. Que o ar estava leve e o tempo agradável: nem calor, nem frio.

Nosso homem, com a mesma despreocupação, acendeu um cigarro, deu uma longa tragada e atravessou a rua.

Naquele dia a mulher esperou. Como? Por que a demora?

Resolveu fazer o mesmo caminho que ele sempre realizava. Inquieta, apreensiva, com passos rápidos e nervosos iniciou o percurso.

Ela ainda está esperando. Esperando até hoje, até amanhã, até sempre, pois um grupo de pessoas estava no local, rodeando um corpo inerte, ao chão. O apressado motorista de um carro não percebeu a feliz falta de atenção de alguém.

Ficou tudo atrapalhado: o trânsito, os curiosos que davam as opiniões mais diversas, os policiais que desviavam com gestos nervosos o vagaroso fluxo de carros, cujos motoristas sempre diminuem a marcha para olhar o que se passou, enfim, uma confusão geral. Atrapalhado, tudo atrapalhado.

Atrapalhada também, e esperando até hoje, até agora, a mulher de olhos misteriosos, sem saber que calmo, sem pressa, apreciando o céu, as casas velhas e a rua antiga, ele continua caminhando tranqüilamente.