ESTIVA
Antes que o vírus do coitadismo contaminasse a população e as bolsas sociais de qualquer coisa fossem incentivo à preguiça, as pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade tinham lugar de trabalho reservado na estiva, principalmente para aqueles sem medo de pegar no pesado em longas horas de trabalho braçal, muitas vezes em condições insalubres.
Como em todo grupo de trabalhadores, existiam aquelas pessoas que se notabilizavam pela maneira jocosa como encaravam as agruras da vida e colocavam os apelidos em todos, não raro salientando um defeito físico, feiura, gagueira, tique nervoso, uso de próteses, falta de dentes, comportamentos estranhos, etc.
Era comum haver um Zé Caveira (alto e magro); Cara de Cavalo ou Manga Larga (Rosto muito grande); Porca Russa (ruivo); Anão de Branca de Neve (baixinho); Gorgulho (gordo e curvado); Resta Um (desdentado); Dente de Matraca (bater os dentes); Sovaco Ilustrado (portador de jornal/revista debaixo do braço); Mão de Gato ou Rato (ladrão); Pé de Cana (apreciadores da “marvada” pinga); Planta e Arranca (claudicante ao caminhar); Bicho Feio (por motivos óbvios); Zangado (sempre de cara amarrada); Olho de Boi (olhos saltados); Zé Neném (abstêmio); Fumo de Rolo (preto); Alicate e Cadê o Jegue (pernas arqueadas); Boca de Alpercata (lábios grossos)...
Os apelidos daqueles que levavam a brincadeira na esportiva, geralmente morriam no nascedouro, mas se houvesse qualquer reação de desagrado, o apelido pegava para sempre.
O Porto do Recife que conheci nos anos da minha juventude era de intensa movimentação por ser polo de atração econômica e porta de entrada dos Estados Nordestinos do Rio Grande do Norte a Alagoas.
Nosso principal produto de exportação, o açúcar, era trazido para o Recife em caminhões ou em barcaças de madeira que depois de passarem pela Ponte Giratória, atracavam no Cais de Santa Rita e legiões de homens atravessavam as pranchas que ligavam as barcas ao cais, transportando nas cabeças as sacas para os armazéns; depois desses para os caminhões que levavam as sacas para os navios cargueiros atracados no porto, aonde outra leva de estivadores despejavam nos porões o açúcar a granel.
No porto, salvo para os trabalhos de capatazia ou conferência das cargas, os trabalhadores nem precisavam saber ler. Bastava ter força física, disposição para trabalhar e ser sindicalizado.
Toda movimentação das mercadorias entre navios, armazéns, caminhões, carroças com tração braçal (apelidada burro sem rabo), lojas grossistas e de varejo, dependia desse pessoal da estiva.
Havia trabalho para todos, mas como sempre, a remuneração não atendia plenamente às necessidades e esses homens também trabalhavam nas ruas do entorno do Mercado de S. José, carregando e descarregando caminhões com produtos vindos do interior ou de outros Estados, além de fazerem fretes desde as lojas até as estações ferroviária ou a rodoviária, erguidas estrategicamente no bairro de São José onde havia maior movimentação de mercadorias.
Nas madrugadas domingueiras, quando havia grande movimentação diante das oficinas do Jornal do Commercio e do Diário de Pernambuco, muitos desses homens eram contratados pelos distribuidores e vinham ajudar a montar os jornais e a transporta-los para as estações onde seriam despachados para o interior e para outros Estados.
Mas o tempo passou.
O porto agora é em Suape; as mercadorias são transportadas em containers; as máquinas substituíram com rapidez e eficiência o trabalho humano; com as compras por telefone e o serviço de entrega em domicílio, as pessoas não precisam mais ir nas lojas, nem carregar pacotes; os jornais perderam a importância; o Estado de Pernambuco perdeu a liderança regional; morreram todos os estivadores que conheci e, na tranquilidade da velhice, eu estou esperando chegar a minha vez.