A esmo
Sentado na varanda de casa, a rua ainda deserta, e ele a vasculhando com os olhos. Às 5h da manhã, de uma manhã enxuta, clara e manhosa; de uma manhã tão jovem, tão alta, tão maresia. O que esse estranho estará procurando, assim tão cedo, na rua deserta, enquanto a cidade, o comércio, as viaturas ostensivas dormem?
Esse estranho parece mesmo estranho. Tão jovem, tão alto, tão sereno, às 5 horas da manhã, sentado na varanda de casa, olhando a rua ainda deserta, enquanto seus pares dormem, embalados pela maresia desta manhã tão jovem, tão alta, tão serena. Será que sofre de insônia, ou apenas está intencionalmente a esmo, evitando a fadiga, a título de passatempo?
Ou talvez seja mais um caso malsucedido de separação de bens, semelhante ao de João Pescador.
João Pescador era casado. Há mais de vinte anos, com a mesma mulher, o que é um feito universalmente incrível. Faz dois anos, porém, que descobriu que não era amor mútuo. Decidiram, pacificamente, o que é um feito universalmente incrível, separar-se. Foi realizado no par ou impar a separação de bens. Na disputa, estavam um sofá usado, três cadeiras de plástico, uma cama de casal, um fogão com duas bocas entupidas, dentre outros móveis modestos, mas muito úteis, sendo a televisão em cores, comprada em doze prestações, o mais querido do então casal.
A televisão era o grande mediador daquele casal. Nos momentos de descontentamentos, de folga da pescaria, de afazeres do lar, era a televisão o grande passatempo de João Pescador e sua esposa. Mas houve a separação, e a um deles deveria ser destinada. Foi realizado o par ou impar. João Pescador perdeu e, portanto, acabou sem seu passatempo favorito: a televisão.
Sem sua principal distração, em seus momentos de desocupação, deu João Pescador para viver a esmo. Igualmente a esse estranho, João Pescador é visto com frequência, às cinco da manhã, na calçada de casa, olhando a rua ainda deserta, à procura não se sabe do quê.
Esse estranho a esmo, sentado na varanda de casa, a rua ainda deserta, a vasculhá-la com os olhos, às 5h da manhã, de uma manhã enxuta, clara e manhosa; de uma manhã tão jovem, tão alta, tão serena, me faz lembrar João Pescador, mas também me faz relembrar uma história razoavelmente feliz, dessas que quase não existem.