O Indígena é Brasileiro?
Algumas vezes escrevemos como catarse. Este é o caso, que escrevo em nome do companheiro de longa e incômoda viagem, de retorno, neste fim de ano - 2023. Viagem imposta pelos altos custos das passagens aéreas.
O vizinho de assento percebeu meu interesse em ouvir” causos” e desabafou espécie de resposta que, por estar na condição de visita, não pode dar ao tio de sua mulher, o anfitrião da reunião.
Contou-me que, durante o jantar, o anfitrião criticou o combate ao garimpo ilegal, dizendo que não adiantaria a destruição dos equipamentos predadores, pois logo seriam repostos, pois a atividade resulta em ganhos extraordinários. Mais do que isso, indagou quando é que nossos indígenas se tornariam brasileiros, ignorando totalmente ser o indígena o mais tradicional, originário e uma das matrizes do povo brasileiro.
Interrompendo sua catarse, aproveitou para mostrar seu entendimento sobre o povo brasileiro. Em tom um pouco irônico disse que o anfitrião até certo ponto tinha razão, pois de fato essa nossa etnia brasileira em formação não é a etnia indígena, apesar de a termos como, juntamente com a africana, nossas matrizes ancestrais. Assim como um filho não é a mãe, a etnia de um povo é diversa da etnia de suas origens maternas e paternas.
E, voltou a catarse... Estaria o anfitrião repetindo a mesma posição do colonizador que, considerando-se infinitamente superior, impôs sua religião, seu modelo de produção, seu modelo sócio político de classes e privilégios? Sim, pois não poderia ter dúvidas quanto a nacionalidade de nosso indígena, haja visto que nosso IBGE, segundo o Censo Demográfico de 2022, levantou 1.693.535 habitantes, o que representa 0,83% do total de brasileiros.
O anfitrião acrescentou que, pelo menos no plantio e colheita de uva, caciques funcionam como empresas terceirizadas, fornecem índios como mão de obra e ficam com grande parte dos salários pagos. Certamente, nesse caso, por coerência ao seu ponto de vista míope, quase cego, deveria elogiar pois, segundo sua adjetivação, teriam se tornado brasileiros.
O fato de índios trabalharem na colheita de uva no extremo sul do país é fato e se deve a essas comunidades terem reduzidas drasticamente suas terras, ficarem cercadas pelo viver urbano e adotaram forma compatível de viver, para sobreviver. Além disso, essas comunidades representam a minoria dos indígenas brasileiros, visto que mais de 70% se concentram nas terras do norte e nordeste.
Em continuidade a resposta ao anfitrião, que ficara entalada e em defesa ao indígena acrescentou estar mais do que claro, que se não existissem as florestas, a vida jamais teria se desenvolvido dessa forma tão complexa no planeta Terra e, são esses indígenas que, por não esqueceram maneira de viver em harmonia com a natureza, mantém as florestas.
O companheiro de viagem ao perceber, que não conseguia mais controlar meu cansaço e bocejava sem moderação, antecipou que acrescentaria somente mais um comentário, sobre a máxima do anfitrião, em seu questionamento: “quando é que nossos indígenas se tornariam brasileiros”?
Certamente, expressou a necessidade de que os indígenas passassem a se alimentar, não mais da caça, e da coleta, mas sim com alimentos contaminados tanto pela água, quanto pelos agrotóxicos, conservantes, corantes...Que passassem a morar, não mais na forma coletiva, mas na individual. Que se convertessem ao cristianismo, passassem a venerar Deus, Onipresente. Onisciente, Onipotente e Criador dos universos, da vida, da Terra, seus reinos, inclusive o dos humanos, mas que, paradoxalmente, agem como os maiores predadores da Obra desee Criador.
Olhou-me, não mais com aquele olhar inicial de pedir licença para desabafar, mas com gratidão e, aliviado, encerrou: agora o senhor pode dormir, ainda temos muito tempo de estrada pela frente. Bom sono.
Peguei um mini travesseiro, encostei no vidro da janela do ônibus e, enquanto chamava o sono, pensei com meus botões: que sorte, já tenho material para uma das primeiras crônicas de 2024...