Intuição feminina
Circula na internet o vídeo da festa de aniversário de uma cidade brasileira comemorado com um bolo gigante servido para os populares, que, na volúpia de apreciar a iguaria, vão se atropelando na busca pelo maior naco e disputam a enorme mesa sem a reverência que o alimento merece. Teve gente que comeu demais e outros que ficaram na saudade. Certamente que ficou o exemplo da má educação. Claro que houve um erro. Faltou organização.
Na minha carreira no magistério, certa vez me inscrevi como professor voluntário em um preparatório para escolas técnicas. Era uma turma de uns trinta alunos, na faixa de treze anos. Me recebiam bem, me ouviam, me aceitavam. Segui apenas os protocolos e me alegrava ver que jovens estudavam de manhã em suas escolas públicas e, à tarde, iam para o cursinho, visando ao exame. Um exemplo! Uma prova de que o Brasil tem jeito! Ao final do curso, antes da última aula para o grupo, entrei no supermercado e comprei três caixas de bombons, colocando-as na minha pasta, que levava pouco material. Então, no finalzinho, antes de uma afável palavra de despedida e estímulo, chamei a Letícia, que ficava na primeira carteira, mostrei-lhe os mimos e lhe disse: “Distribua pra turma”. A menina, vejam bem, de uns treze anos, deu uma lição simples ao cinquentenário, homem de concordâncias, regências e pronomes: “Não professor. Não posso fazer isso. Vai dar confusão. Tem de ser você, passando de carteira em carteira”. Ela disse, e eu o fiz, e depois pronunciei aquelas palavras carinhosas, enquanto alguns ainda degustavam o seu bocado. Um sucesso! Uma harmonia degustativa bem administrada!
Os anos passam. As pessoas ficam em nós, mas costumam sumir. Não sei onde está Letícia hoje. É possível que já esteja se formando na faculdade, que tenha muitos sonhos, que esteja organizando a festa de formatura. Certamente usará de sua intuição, já muito mais aguçada, para ir administrando os problemas que a cada esquina aparecem em nossas vidas.
Como gosto de palavras, vivo procurando de onde elas vieram, a história por trás delas, a sua ‘vida íntima’, como diz Deonísio da Silva, no título de um livro muito saboroso, que certamente reúne estudos de muitos anos. Sabemos, claro, que ‘intuição’ é pressentimento; Deonísio acrescenta: é ‘percepção pronta e clara, obtida pela primeira impressão que nos causa uma pessoa, coisa ou evento, desprezando-se juízos lógicos’. A conceituação encaixa-se como luva na intuitiva Letícia… Deonísio comenta que as mulheres são mais intuitivas que os homens e que, na antropologia, alguns justificam isso pelo ‘encarceramento doméstico delas’, que as obrigou mais a adivinhar do que a conhecer propriamente o mundo circundante.
Penso eu cá comigo. Ah, Letícia!... Contigo, no comando, a festa daquela prefeitura do interior seria um espetáculo lírico inesquecível, e o bolo gigante poderia despertar emoções também gigantes nos velhos – quase sempre saudosos –, nos jovens sonhadores, nos homens e mulheres que amam aquela terrinha e não queriam seu cantinho lembrado pela jocosa guerra do bolo.