Calendário
Odete, nas últimas compras de 2023, no supermercado que costuma ir todo mês, dirigiu-se ao balcão de atendimento com convicção, e foi logo perguntando a atendente sobre o calendário do próximo ano. Por sorte, era um dos últimos exemplares, que eles distribuíam todo mês de dezembro como um brinde para os clientes. Mas sempre disputado. Para ela, não era um calendário qualquer. Ela poderia comprar outro, em qualquer papelaria ou bazar. Mas além da sensação gratificante de ser gratuito, embora estivesse embutido nos preços exorbitantes das prateleiras, era um daqueles calendários grandes, de pendurar na parede. Parecia um quadro. Não fosse as doze folhas, que deviam ser destacadas uma a uma no dia 30 ou 31 dependendo do mês, com exceção de fevereiro, que em 2024 chegaria enfim aos seus 29 dias, poderia ser emoldurado. Outras características a agradavam muito. As letras garrafais, os feriados destacados em vermelho, os domingos em negrito. O nome de cada Santo em seus dias correspondentes, não apenas os conhecidos. Sabia de cor todos eles, mas achou de uma delicadeza tremenda terem lembrado deste detalhe.
No fim de Outubro, Odete já vivia o Ano-Novo, respirava o Ano-Novo, sonhava com o Ano- Novo, contava os dias para o Ano-Novo. Há mais ou menos uns quarenta anos, essa ansiedade tomava conta de seu corpo e ela tinha a convicção de que o próximo ano seria perfeito, tudo mudaria. Uma esperança teimosa, alguns diriam até uma esperança desesperada. Mas para ela, tratava-se de uma esperança duradoura. Ela levou a sério o enquanto houver vida, há esperança. O problema é que Odete não tinha mais vida, só esperança mesmo. E um Ano-Novo, que ano após ano, há décadas, não tinha nada de novo. E nos últimos quinze anos, tudo piorou. O marido foi embora, depois os filhos, não tinha mais paciência para ficar com os netos no final de semana, até o cachorro de 13 anos morreu repentinamente em uma quarta-feira de cinzas, o que fez aumentar sua implicância com fevereiro. Um mês estranho para ela, com seus dias a menos, com seu Carnaval, o calor sufocante do Rio. E as pessoas descontroladas demais, felizes demais, juventude demais para todos os lados, sorrisos demais. Serviços lentos, filas de espera, adiamentos. E o aniversário da sua mãe, que odiava a data e não comemorava aniversários. Embora Odete, ainda menina, com laço de fita, insistia todos os anos em cantar parabéns para mãe, segurando uma vela. Até que aos doze anos tomou uma surra para parar de ser teimosa e respeitar os outros.
Odete acreditava que o Ano-Novo traria um frescor, para sua alma, que foi ficando tão pequena e entrando cada vez mais para dentro. É estranho, mas assim que ela sentia. Odete fumava, dois maços por dia, e a fumaça subindo, lhe dava a sensação de, pelo menos assim colocar algo para fora. Tudo que estava preso na sua garganta. Mas só fazia sua voz ficar cada vez mais rouca.
Dali para frente tudo era assim. Pessoas iam embora, coisas despencavam, criavam rachaduras, adoeciam, enferrujavam, ficavam velhas, opacas, desmoronavam, morriam. Mas havia o Ano-Novo. Havia o calendário ali na parede. Estático. Novinho em folha. E diferente do relógio, que devorava tudo, como disse Quintana, com ele, era diferente. Parecia que de alguma forma o tempo pararia para ela e poderia ser observado com distanciamento. Assim, manipulável, palpável. O calendário era a materialização de sua fé no Ano-Novo. Algum, num futuro não muito distante, haveria de ser diferente.